sábado, 27 de agosto de 2011

AGRIDOCE SINFONIA DA VIDA




Ele chega. Outra cidade ficou no seu retrovisor. A próxima está a vinte e dois quilômetros. E a seguinte a dez quilômetros desta. Ambas não sabem de suas dores.
E não precisam saber.
Ele tem o talento que todo grande músico tem. E os que não são músicos pagam para lhe ver tocar. E a sua guitarra, uma Fender da cor de marfim, é a sua única e fiel companheira. E quando a segura, ele faz isso como quem empunha uma espada pronta para a guerra e sabe como ninguém tocar a sua canção.
A música eletrônica para. Agora é a vez dele.
- Toca Raul. – grita alguém da última fileira de mesas, junto á porta. Erguendo para o alto o próximo pedaço de pizza em um garfo. Ainda com o pedaço anterior na boca.
- Toca Guns – pede outro, na mesa do canto esquerdo ao palco improvisado.
- Sabe tocar Lady Gaga? – pergunta um rapaz trajando roupas com berrantes cores primárias e óculos escuros com armação branca. Na segunda fileira de mesas, em frente ao palco.
- Toca Hey Ho Let’s Go, meu chapa. – grita um rapaz, trajando preto. Na mesa localizada no canto esquerdo do palco.
Na estrada ele está sempre com seus pensamentos. No palco ele não pensa, ele apenas é por duas horas e algumas doses de qualquer bebida Eric Clapton, Jeff Beck, Mark Knopfler, Jimi Hendrix, David Gilmour ou Muddy Waters. Nesses instantes mágicos ele sente o que eles sentiram. E mais nada.
Mas, ele já percebeu que naquele fim de mundo não precisa ser nada parecido com os mestres. Então resolveu não os difamar.
- Toca aquela que toca na rádio. – pede aos berros uma mulher malvestida.
- Toca aquele tema da novela. Ah, por favor, toca, vai. – uma garota na primeira mesa, diante do palco pede, tão delicadamente, que ele não tem como negar o pedido dela.
Se as pessoas a sua frente lessem seus pensamentos certamente ouviriam: “seus porcos, eu poderia lhes mostrar as pérolas que tenho, mas já que querem farelos, farelos terão.”
- Boa noite, - diz ele, - é muito bom estar aqui nessa cidade encantadora, tão cheia de gente bonita, educada e bastante receptiva. – parou um instante, ajeitou o microfone e depois continuou falando. – É uma honra para mim hoje tocar para vocês. E por conta disso eu garanto que vou tocar tudo o que me pediram. Então, divirtam-se.
E quando começou a tocar ele se apagou de si mesmo para dar vida ao intérprete das dores alheias, naquele típico restaurante de cidade no meio do nada. Perto de coisa alguma. Cidade que logo esquecera o nome. E um dia nem se lembrará que ali esteve.
Duas horas depois, quando a música eletrônica voltou a tocar, ele colocou o que ganhou no bolso e seu instrumento de trabalho devolveu a sua gaveta de descanso. E voltou a ser apenas ele mesmo. Com suas dores e defeitos. E uma estrada para seguir.
E quando amanheceu ele partiu.
A cidade agora é um passado distante em seu retrovisor. A próxima cidade já está a menos de dez quilômetros. E a seguinte a dez quilômetros desta. Ambas estão a sua espera. Cada uma delas com as suas dores.
Dores que não precisam saber que também ele sente.



O SORRISO DE ANDRÉ




Eu me coloco diante do meu pôr-do-sol, preparo as minhas armas e o observo se aproximando. Todo dia a mesma rotina. Todo dia da mesma forma.
Mas ele fica lá, sorrindo, despreocupado, zombando de mim, Não dá um passo além. Não dá um passo atrás.
E a noite nunca chega.
Eu me desaponto diante dessa minha fraqueza, engulo a minha raiva e o observo se afastando. Todo dia a mesma jornada. Todo dia da mesma forma.
E assim como quem espera pelo inimigo que nunca chega, nunca ataca e parece sequer existir, sinto a ferrugem fazer profundas cicatrizes em minha espada. Vejo o vento rasgar lentamente insígnias de minha bandeira. E deixo o desânimo horizontar a segurança do meu escudo.
Então me ajoelho e rezo para que ele avance contra mim, não pare no tempo e venha. Não mais humilhe minha coragem e venha. Venha logo e com ele traga também todo o escuro. Venha e leve de uma vez por todas a minha vida ou pereça enfim sob meu sabre.
Mas, não há um passo alem. Não há um passo atrás e novamente outra noite não chega.
E novamente desapontado, mas firme na ciência da repetição das horas, eu me coloco diante do meu pôr-do-sol, preparo as minhas armas e o observo se aproximando. Para mais um dia da mesma rotina. Para mais um dia da mesma espera de um amanhã que nunca, nunca chega.