terça-feira, 25 de outubro de 2011

NÃO SE PODE COMPRAR AS NUVENS


Começou como passos em uma dança, dois para lá, dois para cá. Depois se tornou a minha própria caminhada. E então quando o inverno me alcançou eu já estava correndo para longe, bem longe de mim mesmo. E quando terminou, ponto final em uma página, eu tinha completado toda uma jornada. E para frente não havia mais caminho não caminhado. E eu percebi que não havia mais nada para se ver, nada além de mim mesmo.
E que eu precisava deixar partir quem para sempre desejei ficasse.
Você.
E você partiu.
Depois eu fui limpar o meu armário. Desejando que mais alguém estivesse por perto para ver o quanto do passado é necessário para se esvaziar o presente. E foi exatamente nesse intervalo entre recolher o lixo de ontem e colocá-lo do lado de fora da casa para se recolhido amanhã, que eu lamentei profundamente não ter lhe encontrado antes. Porque certamente saberia mais cedo que na gangorra são dois para os altos e baixos que fazem da vida água para se engolir melhor pílulas enormes. Um para ser o prego, o martelo e a cruz. E outro para ser o crucificado.
Ainda assim fiz em silêncio o trabalho que só eu poderia fazer. Em silêncio, mas com os pensamentos gritando. E quando o cansaço me venceu e fui dormir eu me tranquei por dentro. Mas, confesso que a saudade dos bons dias chegou de repente e não consegui evitar o momento do pesadelo do salto no nada e da queda em parte alguma.
Fraquejei. Fraquejei mesmo. E novamente desejei ser quem veio para lhe confortar, salvar o seu mundo e ser a sua outra metade. Mas aí me lembrei que nem sempre consegui saber de verdade o que diante de tudo isso era melhor para mim, ou para você. Ou mesmo, se durante o tempo que estivemos na mesma corda bamba, ao lhe ter sempre ao meu alcance, subtraí mais do que somei.
E algo mais me veio à mente nesse instante.
E se fossemos além de uma promessa de felicidade certa e se você não se lembrasse da importância de estar perto ou, se eu parasse de me lamentar tanto e se você não soubesse a diferença entre ser e parecer, ainda faria alguma diferença você saber que foi a realidade quem lançou ao chão tudo o que para nós eu sonhei?
Não, certamente não. Ainda melhor do que cruzar fronteiras é invadir o desconhecido mundo novo por alguma de suas passagens clandestinas.
Então finalmente permiti a partida do que mais queria que ficasse ao lhe deixar do lado de fora da minha casa, ao fechar as minhas portas e depois ir dormir de vez.
E agora, tanto tempo depois da última vez que nos ferimos, eu posso lhe dizer que desde então só agora tenho sonhando novamente, e tem sido mais comigo e menos com você. E quando acordo geralmente estou bem melhor, bem melhor do que antes.
Antes de ter cruzado o meu sorriso discreto com os seus pequenos, pequenos e orientais olhos castanhos.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

It is AS IF YOU WERE STILL HERE


I went to my back yard and
I ran to the end of my world and turned
And nothing that I found I was strengthened
Something I always was missing, something thatdid not quite know what.
I returned dishonored, king without a kingdom
I lay on the wet grass and rested
I closed my eyes and dreamed of nothing
Because all discouraged me, nothing I saw why.

Now I count the dead and wounded that my match
There are no winners, only losers. And I among them.
And to think it could have been different
If someone like you never would have gotten.

But you came.

And the wreckage of yesterday are still around to remember:
The crooked lines also in the warp,
And the scars are like road signs to warn me:
Writing some also confuses us.

But will never learn the lesson?
Will wither when the flowers next spring
I will act differently, or do all the same again?

I do not know, I'm like stone that is enchantedwith the sea
While some bounces on the water before sinking.

But I, I opened my arms and just hugged you.
I knew you were dangerous and still took a chance.
I lay on the ground with gunpowder and match his name scratched.
What else would you expect besides fireworks
Lit at night unaware of the joy?

Oh, the things in life have a curious way I happen
And when any one event, even banal, reminds me of you
It's as if you were so close and yet so far away from me.

But it is not.
Because it never really was.

Because I know from my garden and that ofanyone else,
Because I went to the end of the world and thebent
Because I ran into the backyard and back
Because I needed something that I found,
Because it is exactly what I am reluctant to admit
But they never existed.

É COMO SE VOCÊ AINDA ESTIVESSE AQUI




Eu fui até o meu quintal e voltei
Corri até o fim do meu mundo e dobrei
E com nada do que encontrei me animei
Algo sempre me faltava, algo que não sabia bem o que.
Eu voltei desonrado, sem reino rei
Deitei na relva molhada e descansei
Fechei meus olhos e com nada sonhei
Porque tudo me desanimava, em nada eu via o porquê.

Eu conto agora os mortos e feridos desse meu combate
Não há vencedores, só vencidos. E entre eles eu.
E pensar que tudo poderia ter sido diferente
Se alguém como você não tivesse chegado nunca.

Mas você chegou.

E os destroços de ontem ainda estão por aí a me lembrar:
As linhas tortas também nos entortam,
E as cicatrizes serão como placas na estrada a me alertar:
A escrita certa também nos confunde.

Mas será que nunca aprenderei a lição?
Será que quando murcharem as flores da próxima primavera
Eu agirei diferente ou novamente farei tudo igual?

Não sei, eu sou como pedra que se encanta com o mar
Enquanto quica sobre a água pouco antes de afundar.

Mas eu, eu abri os meus braços e apenas a você abracei.
Eu sabia que você era perigo e ainda assim me arrisquei.
No chão eu deitei a pólvora e com fósforo seu nome risquei.
Que mais se poderia esperar além de fogos de artifícios
Iluminando à noite a alegria dos desavisados?

Ah, na vida as coisas têm um jeito curioso de me acontecer
E quando um acontecimento qualquer, banal até, me lembra você
É como se ainda estivesse tão perto e tão distante de mim.

Mas não está.
Porque nunca realmente esteve.

Porque eu sei do meu jardim e o de mais ninguém,
Porque eu fui até o fim do mundo e o dobrei
Porque eu corri até o fundo do quintal e voltei
Porque o algo que me faltava não encontrei,
Por ser exatamente o que reluto em admitir
Mas jamais existiu.

sábado, 8 de outubro de 2011

CONTATOS DOS COLABORADORES

GLAUCEMBERG RODRIGUES
autor de:"Bom Dia, Boa Tarde, Boa Noite, Com Quem Falo?"
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http://www.orkut.com.br/Main#Profile?uid=7988787403386345262
email:glaucem_berg@hotmail.com

MARIO OLIVEIRA
autor de "O mendigo, a igreja e a sociedade"
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E-mail mario.oliveira@gmail.com

DAVID ALEXANDRE LIMA
autor de: "A Garota de Preto Ao Lado"
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DE CORAÇÃO AGRADEÇO
A TODOS PELA COOPERAÇÃO

CRÔNICAS COLETIVAS DO COTIDIANO - A Garota de Preto Ao Lado


Eu peguei um ônibus. Era o Parangaba-Parquelandia. Estava cansado de mais um dia de trabalho. Ela pegou o mesmo ônibus. E pelo belo vestido preto que usava, não foi difícil deduzir que estava indo para uma festa. Eram dez da noite. Muitos outros que como eu vinham do trabalho também pegaram esse mesmo ônibus.
Eu me sentei lá atrás, antes da catraca. Ela passou logo e se sentou lá na frente, perto do motorista. Depois de um tempo, olhei para ela e percebi que havia um espaço vazio ao seu lado. Paguei a passagem e mais do que depressa me desviei das pessoas e ao seu lado fui me sentar.
Ela olhou para mim por uns cinco segundos e depois olhou para a janela. Eu estava com uma vontade danada de falar com ela. E também com uma vergonha maior ainda. Ela não disse nada. Nem eu.
Um homem entrou naquele ônibus, não havia mais lugares vagos, mas ele trazia uma cadeira consigo.
- Ele é esperto. - foi o que eu disse.
Ela sorriu. E seu sorriso era lindo.
Eu senti que aquela era a oportunidade perfeita para falar alguma coisa. Então disse:
- Que horas são?
- Dez e meia. - ela me respondeu.
Que idiota, pensei comigo mesmo. Tive a chance e eu a desperdícei. Revoltado comigo mesmo resolvi me calar e me afundar de vez na minha estupidez.
Mas ela estava linda e cheirosa. E eu estava cansado e suado.
Ela era uma princesa. Eu sempre fui um ogro.
Eu precisava chamar a sua atenção de alguma forma.
Ela continuava olhando o mundo pela janela.
Eu estava doido para falar com ela, mas não sabia o que dizer.
Ela não tirava os olhos do mundo além da janela.
Eu já estava nervoso.
Comecei a cantar baixinho “Pôneis malditos!”.
Ela sorriu.
O ônibus parou no Terminal da Parangaba.
Ela já havia percebido, olhou pra mim e deu um largo sorriso.
Descemos do ônibus e seguimos na mesma direção.

Se eu queria falar alguma coisa tinha que ser naquele momento, e então fiz uma nova pergunta:
- Qual Parangaba você pega?
- Mucuripe. E você?
- João Pessoa. Tá indo pro dragão? - perguntei.
- Não. The Pub. Curtir. E você?
- Casa. Dormir. O que tá tendo lá?
- Batalha das bandas. Um mês só de heavy metal.
- Massa. Adoro heavy metal.
- Massa. Vamos então!
- Outro dia. Agora tô muito cansado. Só quero dormir.
- Tá bom. Até um dia então.
- Até.
O ônibus dela parou. Ela entrou nele.
Logo atrás veio o meu e nele eu entrei.
E dentro do meu ônibus me veio um pensamento. A princesa metaleira foi curtir e o ogro cansado de sua batalha no pântano foi dormir.
- Mas, espera ai, qual o nome dela?


ARTE: retirado de SANDMAN, de NEIL GAIMAN, desenhos de MIKE DRINGENBERG E MALCOLM JONES III
Texto: DAVID ALEXANDRE LIMA

CRÔNICAS COLETIVAS DO COTIDIANO - Eu Sou Davi



Eu disse, e ele acreditou. Podemos consertar isso. Sim podemos. Foi como eu disse. Ele ficou me observando e contabilizando os estragos da última chuva forte que caira em minha vida, enquanto eu tapava buracos no telhado de minha casa. Mas, olha só, continuei falando, onde antes só havia escuridão passa agora um raio de sol por uma fenda. Não é curioso? Ele concordou comigo, afinal não se pode contrariar a um homem que tem pregos e martelo nas mãos, vai que esteja aberta a temporada de caça aos cristãos. Mas, sei lá, às vezes isso tudo é o suficiente para nos salvar das agonias de um dia daqueles.
Ele me conhece como ninguém e também ao ranking de minhas lutas perdidas. As quais constam um desses inúmeros planos econômicos falidos que me levou quase tudo que eu tinha; três casamentos malsucedidos que me levaram o resto; a escolha errada da minha formação acadêmica; a quebra de duas empresas que eu abri e de uma que apenas gerenciava; além de duas quedas de moto e um feio acidente de carro, este último por sinal me deixou algumas cicatrizes pelo corpo e dois pinos na perna direita.
Por um tempo eu cheguei a acreditar que ele duvidava da minha capacidade de reação. Uma vez ele me disse que eu não precisava passar por tudo o que passava, bastava apenas ser menos desligado. Então eu disse, mais para tranquilizá-lo do que a mim: eu sou Davi, o rei de reino algum, o que insiste em continuar de pé e tentando acertar. E ele me respondeu: então, tá.
Algumas pessoas me consideram um completo imbecil que confunde persistência com teimosia. Mas pouco me importa a opinião alheia. Eles não vivem a vida que vivo. Eles não sentem a dor que sinto. Além do que o enterro, quando eu morrer, será o meu, e não o deles.
Mas, eu tenho razões de sobra para ser como sou. Meu pai um dia fora um dos mais xiitas dos comunistas, daqueles que não toma nem coca-cola e duvida até da existência de forças divinas. Mas quando chegara a casa dos sessenta anos e sofrera um ataque cardíaco que quase lhe derrotou, aos céus pediu perdão e desde então vai à missa todos os domingos. E até se filiou a um partido de direita. A minha mãe fora uma empregada domestica, dessas que acorda às cinco da manhã, toma dois ônibus, ganha pouco, se alimenta mal e ainda acredita em romance de novela da televisão. Essa, aliás, foi quem me ensinou que a humildade é uma grande virtude. E a ingenuidade, nem tanto. O meu único irmão fora morto por uma bala perdida que o encontrou em uma troca de tiros entre traficantes e policiais, quando saia da faculdade em que estudava. Um dos meus filhos mora com a mãe e vive agarrado ao pescoço do namorado - um branquelo arrumadinho, com pinta de machão, marrentinho, bombado e metido a skinhead. E confesso que ainda não me acostumei a vê-lo de batom preto, cabelos crespos alisados a base de chapinha, roupas coloridas e cantarolando músicas medíocres de cantoras da moda. A minha filha, que mora com a outra ex-mulher, é a única que tomou jeito na vida. Faz o último ano de Administração e vai herdar com certeza a gerencia de uma rede de supermercados do atual marido de minha ex, um velho gagá e babão, que cheira a naftalina, mas que é cheio da nota. E para mim esse casamento foi um puro e certeiro golpe do baú. Mas sei lá, cada um tem o destino que merece. Ou procura.
Então, não há como não acreditar que nada pode piorar em minha vida.
Eu olhei para o meu amigo e ele sorriu. Talvez se lembrando de alguma piada antiga. Ou da desgraça que se tornou a minha vida.
Nós nos conhecemos no bar em que batemos ponto. Quando ambos estávamos ainda na faculdade. E na ocasião eu estava matando uma aula de Cálculo 2, em plena manhã de segunda-feira. Tomávamos cervejas em mesas separadas e ouvíamos Foo Fighters. Como ele sabia de cor algumas das canções, logo puxei conversa. E como estranhos têm a virtude de em menos de cinco minutos se tornarem amigos de uma vida inteira, logo já éramos quase parentes. Ele estava esfriando a cabeça para se curar de mais uma dor de cotovelo que demorava a cicatrizar. E eu estava ali para me esquecer de uma pesada discussão por causa de pensão alimentícia com uma das minhas futuras ex-esposas. A primeira. Não demorou e já éramos parceiros de farra. E nossa amizade foi se firmando ao longo dos anos. Os quais ele pode de camarote acompanhar a novela de minha vida. E quando alguma coisa não estava muito bem em sua minha vida, eu tinha propriedade para chegar até ele e lhe dizer sorrindo: relaxe, meu amigo, se eu que sou Davi, a mais mazelada das pessoas, sobrevivi a coisas piores, qualquer pessoas no mundo também consegue.
Mas saber disso, confesso que nunca foi um conforto para ninguém. Tampouco para ele.
Hoje a tarde começou meio nublada. Algo pouco comum para um sábado. E ele passou de surpresa em minha casa escoltando a um legitimo doze anos. Esse por sinal é um mal habito que ele tem e precisa consertar com urgência: aparecer sem avisar na casa dos outros. Mas se ele avisar qual será a graça da surpresa? Ele veio me visitar com o sublime intuito de ter a minha valiosa ajudar para derrubar com ele aquele escocês. Eu sei e ele também que é péssimo quando não consegue mais se acostumar a beber sozinho, porque fica sempre faltando alguma peça no tabuleiro de seu xadrez. Mas ele logo percebeu que aquele era um momento inconveniente. Eu discutia como dois rivais de arquibancadas com a minha atual mulher. Ela, como as outras, logo iria embora. Isso era uma questão de tempo. Ambos sabíamos disso. Nós o vimos e um anestésico instantâneo se aplicou no ar. Ela fechou o rosto para ele, como quem diz: “lá se vem mais um dos seus inúteis amigos de copo”. Ele viu aquilo e fingiu que nem era com ele. Eu o cumprimentei como se não nos víssemos há décadas, com o meu sincero e perfeito sorriso de canto a canto da boca. Depois ficamos na sala enquanto a minha esposa se trancara no quarto. Minutos depois ela reapareceu com duas malas nas mãos, uma mochila nas costas e a cara de poucos-amigos. Ele concluiu que realmente tinha escolhido errado à hora de me visitar. Eu pedi licença e fui conversar com ela. Mas nada a declinou de sua decisão. E quando ela foi embora, permanecemos calados por um tempo e depois para quebrar o gelo comentei com ele a natureza selvagem das mulheres. E a minha. E depois ele ainda me ajudou a consertar algumas coisas que estavam fora do lugar em minha casa.


Depois da tempestade, eu disse a ele, é preciso sem demora recolocar o pouco que restou de volta aos seus devidos lugares. Porque, quem garante que o pouco de hoje não será o tudo de amanhã? Ele concordou comigo sem nem pestanejar, afinal não se pode contrariar a um homem que apesar de ter beijado a lona sete vezes, não ficou por muito tempo contemplando a imensidão tranquila do ringue. Mas, sei lá, às vezes isso tudo pode ser a mola propulsora para me lembrar de que nem sempre continuar tentando é mais importante do que ser vencido.

ARTE: retirado de SIN CITY de FRANK MILLER
ARTE : retirado de AKIRA de KATSUHIRO OTOMO
TEXTO: CLAUDIO ALVING

CRÔNICAS COLETIVAS DO COTIDIANO - O mendigo, a igreja e a sociedade



Mais um domingo de missa como tantos outros. Sentado naquela escadaria da catedral estava Zé Brasil, o mendigo. Seu nome na realidade não era José, este fora um adotado após tanto tempo morando na rua e mais tempo ainda depois de perder a própria identidade. Apesar de adotar um nome para si, nunca o usavam: chamavam-no de mendigo, pilantra, sem-vergonha, desocupado, maltrapilho e tantas outras alcunhas. Zé não ligava. Nos dias de missa ele colocava seu prato em um dos lances de escada, sentava no lance logo acima e gemia para os mais próximos ouvirem:
- Uma esmola, pelo amor de Deus! Uma esmola, em nome de Jesus!
Boa parte das pessoas não se comovia com aquela situação, mas como era dia de missa e era um ótimo dia para praticar a fraternidade ao próximo, muitos davam a Zé alguns trocados. Assim, o mendigo ganhava o seu pão, para os momentos de fome, e ganhava o seu circo, na figura da sua aguardente, que proporcionava o seu entretenimento em momentos de solidão.
Não havia nada de especial em Zé Brasil. Era paupérrimo e viera do interior de um estado pobre que ficava bem longe da selva de pedra em que vivia atualmente, acreditando nas promessas de um futuro melhor longe da estiagem. Ao chegar à cidade grande descobriu que as promessas não passavam de nada além de promessas. Tentara pedir dinheiro para voltar para casa, mas não recebera crédito algum. As pessoas não tinham como saber que, entre tantos mentirosos, aquele pobre homem falava a verdade. Zé ainda tinha nome nesse momento. Perdeu-o meses após, com a ajuda de incontáveis goles da cachaça que o alentava nas noites de frio. Suas memórias se esvaíram com a passagem de dias, meses, anos. Todavia, no fundo de seu âmago, Zé guardava lembranças da sua terra natal.
Naquele domingo de missa, naquela igreja, naquela escadaria, Zé decidiu dar um basta à vida de mendigo e voltar para onde nunca deveria ter saído. Voltar para seu agreste, onde não havia concreto. Decidiu parar de beber e guardar parte do que recebia para voltar para casa. Emprego não conseguiu, mas tentou conseguir. Quem empregaria um mendigo? Sem saída, Zé continuou pedindo esmola e relembrou como era difícil fazer isto sóbrio. A embriaguez borrava o olhar penoso das pessoas anteriormente.
De grão em grão, Zé conseguiu juntar todo o dinheiro. Era um dia glorioso, pensava. Correu para a estação e comprou o bilhete. Logo após o grande feito, fez o que normalmente os mendigos não fazem: voltou à sua velha escadaria e entrou na igreja para agradecer por tudo. Mas sua recepção não foi tão calorosa quanto pensou que seria.
- O que um mendigo faz aqui no meio de todos? - murmurou alguém.
- Deve vir pedir esmola junto com a coleta do dízimo. Mas que audácia! - sussurrou baixinho outra pessoa.
- Alguém deveria chamar a polícia! Este é um lugar sagrado, não um lugar para um mendigo pedir esmolas. Onde já se viu uma coisa dessas? - comentou uma terceira pessoa, desencadeando uma chuva de julgamentos em vozes baixas.
O mendigo caminhou até o meio da igreja e escolheu uma fileira com um lugar vazio. Não que importasse se aquele lugar escolhido estava vazio ou não, pois logo após a escolha todos os outros ocupantes do banco mudaram de posição, ocupando outros lugares.
Zé apreciou as figuras celestiais ornamentadas nas paredes da catedral e pôs-se a ouvir o sermão do padre. O padre separou um dos seus sermões favoritos para aquele dia, aquele que tratava sobre a importância da gentileza, do poder do amor e do respeito que os seres humanos, irmãos sob os olhares da santíssima trindade, deveriam sentir uns pelos outros. As pessoas não ligaram para o sermão daquele dia. O mendigo atraía uma atenção muito maior.
Zé Brasil é uma pessoa como tantas outras. Tem suas angústias. Tem seus medos. Tem seu orgulho. De olhos fechados, rezou e sentiu as pessoas o observando. Terminou de rezar e se dirigiu novamente ao meio da igreja. O silêncio invadiu o local e todos, inclusive o padre, prenderam a respiração e esperaram o próximo passo do mendigo.
Num giro, Zé observou todos e notou que a regra dos homens é muito diferente das regras de Deus. Levantou o dedo, fechou os olhos e gritou, em alto e bom tom:
- Seja feita a vossa vontade! Amém! – girou os calcanhares e correu para a rodoviária, se despedindo da hipocrisia da sociedade da metrópole.
Ainda hoje todos os frequentadores daquela igreja se perguntam por onde anda aquele mendigo tão singular. Alguns deles agradecem até hoje aos céus que o mendigo nunca mais voltou à igreja.

ARTE: retirado de UM CONTRATO COM DEUS de WILL EISNER
TEXTO; MARIO OLIVEIRA

CRÔNICAS COLETIVAS DO COTIDIANO - Bom dia, boa tarde, boa noite, com quem falo?



- Oi, Berg, bom dia com quem falo?
Meu dia começa quando digo esta frase. Aparentemente um dia normal e sem nenhuma preocupação, até o primeiro cliente logo de manhã já me aparecer bem estressado.
- Até que enfim alguém me atendeu! Quanta demora, hein?
- Com quem falo?
Sempre faço essa breve pergunta quando um desses me aparece.
- Marcos
- Certo, Marcos, em que posso ajudá-lo?
Em meus pensamentos só achava que aquela ligação iria durar ao menos uns dez minutos, quando me surpreendo com o pequeno problema daquele cliente, onde se tinha que fazer apenas um pequeno aprazamento de sua fatura.
- Pronto, Marcos, já abri o registro e aprazei seu vencimento por mais cindo dias para que não tenha problemas com juros e multas. - Ele agradeceu pelo rápido atendimento e desligou.
Sempre que um cliente desliga, nós, os operadores, sonhamos em ficar disponíveis, nem que seja por míseros dez segundos, mas nossa realidade é bem diferente, desliga um, aparece outro, quase sempre sem intervalo.
De ligação em ligação, rápido chega o primeiro descanso, dez minutinhos para ir ao banheiro, tomar um café, conversar ou assistir a algum programa de televisão.
- Oi, Berg, boa tarde, com quem falo?
Com esta frase começa o turno da tarde, atendendo uma pessoa bem particular.
- Boa tarde, me chamo Rafilda.
Esse é o breve momento que rimos e pensamos no porquê de um nome assim.
- Em que posso ajudar Rafilda?
- Meu filho, meu telefone esta bloqueado para celular e não pedi esse serviço.
- Entendo, aguarde um momento enquanto verifico.
Como é um procedimento simples, pois foi apenas uma falha sistêmica, essa ligação é perfeita para relaxar um pouco e até mesmo conversar com algum colega ao lado.
- Pronto, Rafilda, verifiquei que era apenas uma falha e já abri o registro de reparo, o prazo é de até vinte e quatro horas para normalizar.
- Obrigado pelo atendimento Berg.
- Eu que agradeço a sua ligação tenha uma boa tarde.

Como não poderia faltar em um dia de trabalho, à hora do lanche chega, agora tenho vinte minutos para engolir algo, tem que ser rápido, um minuto de atraso no lanche equivale a um minuto de desconto no meu contracheque.
Voltando do lanche, e já é bem próximo do turno da noite, quando crianças já chegaram da escola, sabem do que estou falando? Isso mesmo, trotes, pelo menos dois no dia tenho que receber.
- Oi, Berg, boa noite, com quem falo?
- Com o Diabo. – falou alto uma voz fina de criança.
- É mesmo? Papai-do-céu vai te buscar daqui a pouco para te levar de volta para seu lugar, tá bom?
Levo trotes como descontração e brinco também.
- Por motivo de trote, a ligação será encerrada.
Encerrado o trote, finalmente chegam os dez minutos finais do expediente. Logo pensei que nunca mais iria fazer duas horas extras por serem muito cansativas. E finalmente volto para casa tranquilo, onde penso apenas em tomar um banho e dormir, para quando acordar amanhã ocorrer tudo de novo.


Arte – retirado de WATCHMEN De ALAN MOORE – DAVE GIBBSON
Arte – retirado de AKIRA De KATSUHIRO OTOMO
TEXTO: GLAUCEMBERG RODRIGUES

CRÔNICAS COLETIVAS DO COTIDIANO

SEMPRE QUIZ TRABALHAR COM AMIGOS E ENTÃO MONTEI ESSA COLETIVAS
COM TEXTOS DE AMIGOS QUE VALEM A PENA SEREM LIDOS E SÃO ELES
GLAUCEMBERG RODRIGUES, MARIO OLIVEIRA E DAVID ALEXANDRE LIMA
SINTO-ME HONRADO EM ESTAR AO LADO DESSAS ILUSTRES E TALENTOSAS PESSOAS
AOS QUAIS AGRADEÇO A COOPERAÇÃO NESTE MEU BLOG