quinta-feira, 1 de novembro de 2012

DECLÍNIO E QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO


- Senhor, senhor, posso andar no seu skate? - perguntou-me um garoto moreno, que tinha uns doze anos de idade, enquanto eu estava na praça, encostado na grade de proteção da quadra de esportes do meu bairro, olhando os novos skatistas que faziam manobras sobre alguns obstáculos no meio da quadra.
Eu os observava enquanto resolvia se andaria ou não com eles.
- Senhor, senhor, posso? – insistia o garoto.
Eles eram bons.Enada originais. Esforçavam-se tanto em parecer extraordinários, tanto, no entanto, a cada nova manobra que executavam mais e mais pareciam apenas copiar as mesmas manobras de vários vídeos de skate que eu já vira antes, cena por cena, do Tony Hawk, do Rodney Mullenou de qualquer outro skatista realmente genial que já tenha aparecido. Nem eram melhores do que os caras com quem andei tempos atrás nesta mesma quadra, o Bob e seu penteado estiloso, o Chande e suas piadas, o Ricadinho e sua mania de querer parecer rebelde, e para mim o mais fera de todos nós, o Zé Wellington, que de nós todos já havia ganhado alguns campeonatos de skate até fora do estado. Nossa como sinto falta desses caras, por onde andarão agora? Sinceramente não sei. O tempo costuma unir feito corrente e depois separar feito semana passada e semana que vem. Mas, esses novos skatista, nossa, acho que devem ter rebobinado tantas vezes as velhas fitas VHS ou, o agora tal comum, ter baixado direto da internet, de modo que não havia como negar que aprenderam direitinho. Foi o que pensei no primeiro instante. E confesso que até era bonito vê-los passando sobre as rampas e deslizando pelo corrimão. No entanto, apesar de toda aquela nostalgia no ar, por mais que eu me esforçasse não conseguia ver nada de inovador naquilo tudo?
E isso era desanimador.
Por mais que eu procurasse não conseguia ver ninguém entre aqueles novos desafiadores de ondas duras que fosse realmente criativo executando uma manobra. Ninguém que me desse orgulho andar ao lado. Tudo era tão plástico. E nada metal. Havia, é verdade, certa beleza naquilo tudo. Mas um tipo de beleza que de tanto ser vista logo se torna enfadonha. E no fundo eu sabia que não havia nada demais neles. Nada que encantasse a um Bob Burnquist ou a um Lincoln Ueda da vida.
- Senhor, senhor, posso? – eu ouvia sem escutar a insistência do garoto.
Andar de skate é uma sensação única. Só quem anda ou já andou sabe realmente como é. Não é como surfar, tampouco descer duna de areia ou montanha de gelo sobre uma prancha ou um esqui. Não, é uma sensação única. Sem valor porque não tem preço. E eu durante um bom tempo andei com skate emprestado. E confesso que era um bocado insistente quando pedia aos skatistas que me deixassem dar uma voltinha que fosse. E quando não me deixavam sequer pegar no skate deles, fazia alguma espécie de terrorismo.
Algumas vezes funcionava.
Ao fim de uma sessão de vinte minutos, por mais básica e simples que ela seja, o skatista normalmente está cansado e precisando repor as energias com algum líquido. Geralmente nas praças nunca se encontra um bebedouro por perto. E eu na minha ânsia de andar, e sabedor que ninguém me emprestaria um skate à toa, sempre levava uma garrafinha de água comigo. Assim a minha água era a minha moeda de troca. Uma espécie de bilhete para eu brincar em qualquer brinquedo do parque de diversões. E dessa maneira eu andava e aproveitava cada um dos segundos dos minutos que eu tinha um skate ao meu dispor. Porque andar de skate é uma sensação única, sem valor porque não tem preço. E aqueles skatistas não sabiam disso por isso me vendiam um passeio por alguns goles d’água.
- Senhor...
Eu comecei a andar realmente quando fiz quinze anos de idade, quando comprei meu primeiro skate. Na minha casa dinheiro sempre fora uma mercadoria em falta no supermercado da minha vida. E por conta disso sempre alternei períodos em que morava na casa de meus tios e na casa de meus pais. Eu estudava no centro da cidade, em uma escola particular, graças a uma bolsa de estudo integral que minha tia conseguira a duras penas para mim. E para conseguir comprar meu skate economizei durante seis longos meses todo e qualquer dinheiro que eu ganhasse. Desde o dinheiro da merenda na escola, o da passagem de ônibus e alguns trocados que meu tio me dava quando eu lhe ajudava em algum serviço que me mandasse fazer. E também vendendo todos os meus quadrinhos e revistas pornôs que eu tinha para uns colegas da minha escola. E então, em uma bela quinta-feira, acabei comprando meu único skate, um magnífico Birdhouse vermelho, que me custou o que já mencionei e mais uma ajudinha de minha tia. Ela percebeu o quanto fiquei desolado e aborrecido em uma tarde em que não conseguir andar de skate e para casa voltei chateado e revoltado com o mundo. Assim, por conta da minha cara fechada, ela me deu o dinheiro que faltava. Uma boa parte por sinal.
Dessa maneira eu juntei uma pequena fortuna para comprar um skate de segunda mão. E isso sóse deu também por conta de mais um outro fato. Um conhecido meu estava precisando de dinheiro urgente. Ele engravidara uma namorada sua, iriam morar juntos, trabalharia dois expedientes, estudaria à noite e o seu skate certamente ficaria abandonado em um canto qualquer de sua nova casa. Em situação normal ele nunca venderia o seu skate. Nem sequer cogitaria tal hipótese. Era tão fascinado por andar quanto eu. Mas como escrevera uma vez Bernard Cornwell: “o destino é inexorável”. E assim, por conta de um descuido seu, o seu skate vermelho veio morar comigo.
Então eu tinha um skate.
E eu o levava para onde eu fosse. Desde a escola até a praia. Sim à praia. Apesar de ter morado por toda a minha vida em uma cidade litorânea nunca aprendi a nadar. Eu ficava na areia enquanto os meus amigos estavam surfando, deitado com a cabeça encostada na base do meu skate. Eu sabia que isso era motivo de piada entre eles, mas isso pouco me importava.
Apesar de ser skatista e ter um skate, como skatista nunca fui lá grande coisa, mas acertava algumas manobras básicas e outras um tanto difíceis. Nos dias mais felizes eu fazia com quase perfeição um backside, grub e às vezes até um kirkflip. No entanto, nos dias normais, eu voltava ao normal e errava feio até uma das manobras mais fáceis do mundo, o ollie. Essa minha inconstância me fez alvo constante da gozação entre os skatistas que me conheciam. O Zé Wellington foi o único que me pedira par não me importar muito com a opinião dos outros, que ele também tinha dias ruins. Mas o fato é que isso acabou me distanciando cada vez mais e mais de qualquer grupinho. E me fazendo preferir andar sozinho. Livre. Eu, meu skate, minha mochila nas costas, meu tênis Qix preto - com um silver tape em detalhe, jeans - geralmente com a barra se desfazendo por conta da lixa do sharpe, alguma camisa vermelha, Green Day no fone de ouvido, o asfalto e o mundo inteiro ao meu dispor.
Nunca participei de nenhum campeonato. Nunca me esforcei para acertar alguma manobra difícil. E nunca me importei com isso. Eu era apenas um skatista como outro qualquer. Que sempre andou por andar. Querendo o prazer de sentir no rosto o vento vindo na contramão. Porque até hoje não encontrei sensações melhores do que andar de skate e ouvir o som desuas rodinhas riscando o chão, e abrir os meus braços enquanto vencia os desafios de uma ladeira. E isso para mim sempre fora o suficiente: Surfar com elegância na onda dura.
Hoje há varias manobras de skate que nem arrisco fazer. 180º, kirkflip, hardflip estão entre elas. Pior ainda, nos meus dias mais complicados nem um ollie, a mais simples das manobras, faço direito.
E isso tem uma razão.
Inúmeras foram às vezes em que caí e quebrei alguma parte do meu corpo. Mas três dessas quedas foram diferentes das outras. Nelas a minha mão esquerda fora sempre à principal vítima. Sendo que na terceira vez o médico que me engessou a mão me disse algumas duras verdades. Ele apenas “sugeriu” que, como não tinha mais quinze anos de idade, eu deixasse de andar de um lado para outro em cima de uma pranchinha sobre quatro rodinhas; que eu deixasse essa brincadeira de adolescente de lado e me dedicasse a uma corridinha leve de trinta minutos, ou alguma coisas do tipo. Ele me disse isso de uma maneira tão dura, algo como: “faça isso ou perca a mão”, que foi impossível eu não me declarar culpado. Puro terrorismo, eu sei, mas desde então aprendi o real sentido de “não importa o que é dito e sim a maneira como isso é feito”. E pior, quem lhe diz isso. De alguma maneira isso serviu para que eu olhasse melhor para outros lados.
E nada do que eu vi me agradou muito naquela época.
Desde então fui menos skatista do que qualquer um que eu já tenha conhecido. E também daqueles que andavam como eu, os amadores. E, com profunda dor no coração, pude dizer: já não era mais um skatista. Digo isso porque a partir daí percebi que ao colocar meu skate no asfalto e ao me preparar para subir em cima dele, eu adquirira o medo de cair e de me machucar. E isso para um skatista é o fim. Um skatista não pode ter medo de cair e de se machucar, porque isso é tão natural quando respirar, comer, dormir e tudo mais que nos mantém vivos.
Ainda assim continuei andando, mais por teimosia do que por qualquer outro motivo. Com menos pressa e com muito mais cuidado do que antes. E o skate, menos que uma diversão passou a ser, e foi por um bom tempo, uma tela empoeirada na parede da minha casa.
Até que hoje eu tirei esse quadro da parede e resolvi enfrentar novamente a mesma quadra que tempos atrás eu implorava para conseguir um skate para dar uma voltinha que fosse. E a quadra continuava como sempre estivera, cheia de skatista de diversas idades. E havia sim lugar para eles todos ali. Para eles sim. Para mim, não. Eu olhei aquele universo e me senti estranho a ele. Um total estrangeiro. E um ridículo homem de meia idade, segurando um velho skate vermelho. Velho e com alguns arranhões pelo corpo.
- Senhor, senhor, posso andar no seu skate?
Perguntou-me um garoto moreno que tinha por volta dos doze anos de idade, enquanto eu estava na praça, encostado na grade de proteção da quadra de esportes do meu bairro, olhando os novos skatistas que faziam manobras sobre alguns obstáculos no centro da quadra.
- Senhor, senhor, posso? – insistia o garoto.
Eu olhei para o garoto e antes que ele me fizesse mais uma vez a mesma pergunta que me fizera nos últimos vinte minutos eu lhe disse:
- Não.
- Não posso senhor? – perguntou-me ele desanimado, quase que caindo no choro.
- Não garoto.
- Tudo bem então. – ele disse isso e foi se afastando de mim, desolado, triste e derrotado.
Eu o chamei de volta. Exatamente porque me vi nele. E porque não me vi mais naquele universo.
- Não, garoto, - eu lhe disse, - eu não posso lhe emprestar meu skate. Mas pode ficar com ele.
Depois eu coloquei o meu skate no chão e dei um leve empurrãozinho para que este chegasse até onde o garoto estava. E antes que o skate chegasse ao seu derradeiro destino eu me virei e fui andando o mais rápido que pude para longe daquele lugar que um dia fora a minha casa.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito bacana esse relato e lembrar dessa galera massa. Que tempo bom!

Boby.


P.S.: Meu penteado estiloso agora é cabelo de milico.