quinta-feira, 1 de novembro de 2012

DECLÍNIO E QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO


- Senhor, senhor, posso andar no seu skate? - perguntou-me um garoto moreno, que tinha uns doze anos de idade, enquanto eu estava na praça, encostado na grade de proteção da quadra de esportes do meu bairro, olhando os novos skatistas que faziam manobras sobre alguns obstáculos no meio da quadra.
Eu os observava enquanto resolvia se andaria ou não com eles.
- Senhor, senhor, posso? – insistia o garoto.
Eles eram bons.Enada originais. Esforçavam-se tanto em parecer extraordinários, tanto, no entanto, a cada nova manobra que executavam mais e mais pareciam apenas copiar as mesmas manobras de vários vídeos de skate que eu já vira antes, cena por cena, do Tony Hawk, do Rodney Mullenou de qualquer outro skatista realmente genial que já tenha aparecido. Nem eram melhores do que os caras com quem andei tempos atrás nesta mesma quadra, o Bob e seu penteado estiloso, o Chande e suas piadas, o Ricadinho e sua mania de querer parecer rebelde, e para mim o mais fera de todos nós, o Zé Wellington, que de nós todos já havia ganhado alguns campeonatos de skate até fora do estado. Nossa como sinto falta desses caras, por onde andarão agora? Sinceramente não sei. O tempo costuma unir feito corrente e depois separar feito semana passada e semana que vem. Mas, esses novos skatista, nossa, acho que devem ter rebobinado tantas vezes as velhas fitas VHS ou, o agora tal comum, ter baixado direto da internet, de modo que não havia como negar que aprenderam direitinho. Foi o que pensei no primeiro instante. E confesso que até era bonito vê-los passando sobre as rampas e deslizando pelo corrimão. No entanto, apesar de toda aquela nostalgia no ar, por mais que eu me esforçasse não conseguia ver nada de inovador naquilo tudo?
E isso era desanimador.
Por mais que eu procurasse não conseguia ver ninguém entre aqueles novos desafiadores de ondas duras que fosse realmente criativo executando uma manobra. Ninguém que me desse orgulho andar ao lado. Tudo era tão plástico. E nada metal. Havia, é verdade, certa beleza naquilo tudo. Mas um tipo de beleza que de tanto ser vista logo se torna enfadonha. E no fundo eu sabia que não havia nada demais neles. Nada que encantasse a um Bob Burnquist ou a um Lincoln Ueda da vida.
- Senhor, senhor, posso? – eu ouvia sem escutar a insistência do garoto.
Andar de skate é uma sensação única. Só quem anda ou já andou sabe realmente como é. Não é como surfar, tampouco descer duna de areia ou montanha de gelo sobre uma prancha ou um esqui. Não, é uma sensação única. Sem valor porque não tem preço. E eu durante um bom tempo andei com skate emprestado. E confesso que era um bocado insistente quando pedia aos skatistas que me deixassem dar uma voltinha que fosse. E quando não me deixavam sequer pegar no skate deles, fazia alguma espécie de terrorismo.
Algumas vezes funcionava.
Ao fim de uma sessão de vinte minutos, por mais básica e simples que ela seja, o skatista normalmente está cansado e precisando repor as energias com algum líquido. Geralmente nas praças nunca se encontra um bebedouro por perto. E eu na minha ânsia de andar, e sabedor que ninguém me emprestaria um skate à toa, sempre levava uma garrafinha de água comigo. Assim a minha água era a minha moeda de troca. Uma espécie de bilhete para eu brincar em qualquer brinquedo do parque de diversões. E dessa maneira eu andava e aproveitava cada um dos segundos dos minutos que eu tinha um skate ao meu dispor. Porque andar de skate é uma sensação única, sem valor porque não tem preço. E aqueles skatistas não sabiam disso por isso me vendiam um passeio por alguns goles d’água.
- Senhor...
Eu comecei a andar realmente quando fiz quinze anos de idade, quando comprei meu primeiro skate. Na minha casa dinheiro sempre fora uma mercadoria em falta no supermercado da minha vida. E por conta disso sempre alternei períodos em que morava na casa de meus tios e na casa de meus pais. Eu estudava no centro da cidade, em uma escola particular, graças a uma bolsa de estudo integral que minha tia conseguira a duras penas para mim. E para conseguir comprar meu skate economizei durante seis longos meses todo e qualquer dinheiro que eu ganhasse. Desde o dinheiro da merenda na escola, o da passagem de ônibus e alguns trocados que meu tio me dava quando eu lhe ajudava em algum serviço que me mandasse fazer. E também vendendo todos os meus quadrinhos e revistas pornôs que eu tinha para uns colegas da minha escola. E então, em uma bela quinta-feira, acabei comprando meu único skate, um magnífico Birdhouse vermelho, que me custou o que já mencionei e mais uma ajudinha de minha tia. Ela percebeu o quanto fiquei desolado e aborrecido em uma tarde em que não conseguir andar de skate e para casa voltei chateado e revoltado com o mundo. Assim, por conta da minha cara fechada, ela me deu o dinheiro que faltava. Uma boa parte por sinal.
Dessa maneira eu juntei uma pequena fortuna para comprar um skate de segunda mão. E isso sóse deu também por conta de mais um outro fato. Um conhecido meu estava precisando de dinheiro urgente. Ele engravidara uma namorada sua, iriam morar juntos, trabalharia dois expedientes, estudaria à noite e o seu skate certamente ficaria abandonado em um canto qualquer de sua nova casa. Em situação normal ele nunca venderia o seu skate. Nem sequer cogitaria tal hipótese. Era tão fascinado por andar quanto eu. Mas como escrevera uma vez Bernard Cornwell: “o destino é inexorável”. E assim, por conta de um descuido seu, o seu skate vermelho veio morar comigo.
Então eu tinha um skate.
E eu o levava para onde eu fosse. Desde a escola até a praia. Sim à praia. Apesar de ter morado por toda a minha vida em uma cidade litorânea nunca aprendi a nadar. Eu ficava na areia enquanto os meus amigos estavam surfando, deitado com a cabeça encostada na base do meu skate. Eu sabia que isso era motivo de piada entre eles, mas isso pouco me importava.
Apesar de ser skatista e ter um skate, como skatista nunca fui lá grande coisa, mas acertava algumas manobras básicas e outras um tanto difíceis. Nos dias mais felizes eu fazia com quase perfeição um backside, grub e às vezes até um kirkflip. No entanto, nos dias normais, eu voltava ao normal e errava feio até uma das manobras mais fáceis do mundo, o ollie. Essa minha inconstância me fez alvo constante da gozação entre os skatistas que me conheciam. O Zé Wellington foi o único que me pedira par não me importar muito com a opinião dos outros, que ele também tinha dias ruins. Mas o fato é que isso acabou me distanciando cada vez mais e mais de qualquer grupinho. E me fazendo preferir andar sozinho. Livre. Eu, meu skate, minha mochila nas costas, meu tênis Qix preto - com um silver tape em detalhe, jeans - geralmente com a barra se desfazendo por conta da lixa do sharpe, alguma camisa vermelha, Green Day no fone de ouvido, o asfalto e o mundo inteiro ao meu dispor.
Nunca participei de nenhum campeonato. Nunca me esforcei para acertar alguma manobra difícil. E nunca me importei com isso. Eu era apenas um skatista como outro qualquer. Que sempre andou por andar. Querendo o prazer de sentir no rosto o vento vindo na contramão. Porque até hoje não encontrei sensações melhores do que andar de skate e ouvir o som desuas rodinhas riscando o chão, e abrir os meus braços enquanto vencia os desafios de uma ladeira. E isso para mim sempre fora o suficiente: Surfar com elegância na onda dura.
Hoje há varias manobras de skate que nem arrisco fazer. 180º, kirkflip, hardflip estão entre elas. Pior ainda, nos meus dias mais complicados nem um ollie, a mais simples das manobras, faço direito.
E isso tem uma razão.
Inúmeras foram às vezes em que caí e quebrei alguma parte do meu corpo. Mas três dessas quedas foram diferentes das outras. Nelas a minha mão esquerda fora sempre à principal vítima. Sendo que na terceira vez o médico que me engessou a mão me disse algumas duras verdades. Ele apenas “sugeriu” que, como não tinha mais quinze anos de idade, eu deixasse de andar de um lado para outro em cima de uma pranchinha sobre quatro rodinhas; que eu deixasse essa brincadeira de adolescente de lado e me dedicasse a uma corridinha leve de trinta minutos, ou alguma coisas do tipo. Ele me disse isso de uma maneira tão dura, algo como: “faça isso ou perca a mão”, que foi impossível eu não me declarar culpado. Puro terrorismo, eu sei, mas desde então aprendi o real sentido de “não importa o que é dito e sim a maneira como isso é feito”. E pior, quem lhe diz isso. De alguma maneira isso serviu para que eu olhasse melhor para outros lados.
E nada do que eu vi me agradou muito naquela época.
Desde então fui menos skatista do que qualquer um que eu já tenha conhecido. E também daqueles que andavam como eu, os amadores. E, com profunda dor no coração, pude dizer: já não era mais um skatista. Digo isso porque a partir daí percebi que ao colocar meu skate no asfalto e ao me preparar para subir em cima dele, eu adquirira o medo de cair e de me machucar. E isso para um skatista é o fim. Um skatista não pode ter medo de cair e de se machucar, porque isso é tão natural quando respirar, comer, dormir e tudo mais que nos mantém vivos.
Ainda assim continuei andando, mais por teimosia do que por qualquer outro motivo. Com menos pressa e com muito mais cuidado do que antes. E o skate, menos que uma diversão passou a ser, e foi por um bom tempo, uma tela empoeirada na parede da minha casa.
Até que hoje eu tirei esse quadro da parede e resolvi enfrentar novamente a mesma quadra que tempos atrás eu implorava para conseguir um skate para dar uma voltinha que fosse. E a quadra continuava como sempre estivera, cheia de skatista de diversas idades. E havia sim lugar para eles todos ali. Para eles sim. Para mim, não. Eu olhei aquele universo e me senti estranho a ele. Um total estrangeiro. E um ridículo homem de meia idade, segurando um velho skate vermelho. Velho e com alguns arranhões pelo corpo.
- Senhor, senhor, posso andar no seu skate?
Perguntou-me um garoto moreno que tinha por volta dos doze anos de idade, enquanto eu estava na praça, encostado na grade de proteção da quadra de esportes do meu bairro, olhando os novos skatistas que faziam manobras sobre alguns obstáculos no centro da quadra.
- Senhor, senhor, posso? – insistia o garoto.
Eu olhei para o garoto e antes que ele me fizesse mais uma vez a mesma pergunta que me fizera nos últimos vinte minutos eu lhe disse:
- Não.
- Não posso senhor? – perguntou-me ele desanimado, quase que caindo no choro.
- Não garoto.
- Tudo bem então. – ele disse isso e foi se afastando de mim, desolado, triste e derrotado.
Eu o chamei de volta. Exatamente porque me vi nele. E porque não me vi mais naquele universo.
- Não, garoto, - eu lhe disse, - eu não posso lhe emprestar meu skate. Mas pode ficar com ele.
Depois eu coloquei o meu skate no chão e dei um leve empurrãozinho para que este chegasse até onde o garoto estava. E antes que o skate chegasse ao seu derradeiro destino eu me virei e fui andando o mais rápido que pude para longe daquele lugar que um dia fora a minha casa.

domingo, 22 de abril de 2012

ISSO É TUDO



Quando ainda eu era um anjo
- e eu fui anjo um dia, sim, eu fui;
Quando ainda eu não via o mundo
Como agora eu o vejo, tom de cinza avermelhado,
- um dia ele teve outra cor além do vermelho;
Quando eu ainda tinha os sonhos
Que agora não os tenho mais,
- um dia eu tive sonhos, um dia.. mas faz tanto tempo;
Vó Benedita me contava histórias
De quando ainda era um anjo
E de como foi se perdendo de suas asas
Ao longo de duas grandes mudanças em sua vida:
Sair de sua terra, e ter que vendê-la para vir para cá;
E tia Luiza me dizia, sorrindo como sempre: filho,
Se você é bom se mantenha inteiro
Que o mundo costuma nos partir em bandas e
Que em suma, somos nada e isso é tudo.


Eu ouvi isso tudo como quem bebe água com sede,
E sabiam que eu realmente ouvia. E que tinha sede.
E quando todos se foram,
Olhei para o nada que me restou
E não tive como não lhes dá razão.
Não, não tive.


Acordei no meio da noite, andei pela casa. Cheguei à janela. Silêncio da noite. Noite sem estrelas. Noite sem sonhos. Voltei à cama. Fechei os olhos. Os leões de ontem também não dormiam e rondavam meus pensamentos. Até que ambos me venceram, os leões e o cansaço. Acordei no meio da tarde. Tarde demais para repor o tempo perdido. Vesti-me, fui trabalhar.


Porque,
Eu até que tento me manter inteiro
Mas o mundo insiste em querer me partir em bandas,
E também porque sei que em suma, somos nada e isso é tudo.


Quando eu ainda não tinha um quarto do pânico,
Quando eu ainda colecionava selos com araras
Que hoje são raros, os selos, as araras,
Marcos Marcolis tinha as duas mãos,
E tocava um violão desafinado em um palco sob passarela
Enquanto eu declamava os versos mais sem eira nem beira que já fiz,
E era engraçado, ao menos para mim, vê de cima as pessoas lá em baixo
Nos ouvindo muito mais por educação do que por vontade,
E com uma vontade danada de nos arremessar tomates.
Carlos Emilio me disse, calmo e doido como sempre: poeta,
Tenha calma - e não quebre mais aquários com barcos de papel dentro,
Eles até que tentam, vejam que te aplaude, sim, aplaudem,
Mas ainda não estão nada preparados para tanto. Não, não estão.

É, eu me lembro de tudo,
- E também do Marcos Marcolis rodando, rodando e segurando seu violão
Como se ambos fossem no parque de diversões, cavalinho e carrossel;
E de como vó Benedita preparava domingo de manhã pão de arroz para o café;
E de tia Luiza me perguntando, enquanto tomava um de seus remédios
Quando eu iria visitar a sua terra, enquanto vó Benedita olhava algo pela janela;
E também de Carlos Emilio soltando suas raias sem calda nos céus da cidade.
Lembro-me como se fosse o dia em que cair pela primeira vez do skate,
Lembro-me desde o primeiro até o último instante, nossa, como me lembro mesmo!
E agora que tudo isso é passado,
Não há como não sentir saudade disso tudo, não, não há.

É curioso, mas comprei um disco do Coldplay, eu o ouvi a tarde inteira. Depois fiquei pensando em coisas do tipo: viver a vida ou morrendo tentando vivê-la. Me sentei no chão da varanda esperando a estrela-dalva. Ele não veio. Quem me veio foi uma noite sem estrelas. Fui para o quarto. Encostei a cabeça no travesseiro. O dia me foi pesado. O frio da madrugada não teve cobertor suficiente. Voltei o meu olhar para o teto até cair no sono. Acordei no meio da noite, andei pela casa...

Mas, o porquê disso tudo agora?
Ora, o porquê?
Porque
Eu até tento me manter inteiro
Mas o mundo insiste em querer me partir em bandas,
E também, porque sei que em suma, somos nada e isso é tudo.

sexta-feira, 9 de março de 2012

FORTITUDINE




É tudo uma verdade
Que criei?
Pode ser
E também não.
Mas, não tenho medo de ser a verdade
Menos interessante que a mentira.

Afinal,
Duas guerras, muito sangue,
E o inimigo ainda vive.
E quem bebe da ilusão presente
De que a dor agora passou
Não percebe que minha história,
Um dia formidável,
Pela casa caminha cansada,
Conversando pelos cantos
E esconderijos
Pontiagudos da casa
Com o passado morto.

E pensar que
Muitos amanhecer atrás
Bem antes da criança virá este monstro,
Eu gritava a plenos pulmões
Que juventude e um sonho possível
Era tudo o que se precisava
Para se andar de mãos dadas
Com a felicidade
- E até mesmo ser feliz.
Sim eu gritava.
E como gritava,

Quando jovem eu gritava.

Mas,
Veja só, os ventos mudaram,
E as pontes caíram,
E as estradas bloquearam,
E os heróis tombaram,
E os anos se seguiram mortos
Sem uma gota sequer do orvalho matinal
Como lembrança do sereno noturno
E sua solidão.

E os anos se seguiram noite.

Não por menos o que era certeza deixou de ser
A sombra da sombra do que um dia fora.

Mas,
Também quando criança
Ouvi minha mãe dizer,
Enquanto penteava meus cabelos,
Que queria para mim uma vida melhor
Que a que meu pai nos dera.
Meu pai, ao contrario da correnteza,
Queria que fôssemos parecidos,
Enquanto que eu, eu,
Eu queria apenas ficar
Com o meu kit básico criança feliz,
Com bila, bola, peão, pipa
E uma tarde ensolarada.

Era isso o que queria.
Nunca quis mais e
Nunca quis menos.

E agora, olhando para tudo o que tenho,
Tudo o que me é certo e também o inconstante,
Tudo o que me falta e o que não mais terei,
Tenho conforto na grata sensação que cada uma
Das quedas que tive, e mais ainda nas que terei,
Por ter aprendido que dor é a matéria-prima da alma.

Mesmo em uma alma como a minha
Que aspirou apenas
Existir.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

FOTOGRAFIAS EM BRANCO E PRETO DE ISABEL MUNIZ

TEXTO DE APRESENTAÇÃO DA SÉRIE

Minha amiga e poetisa bissexta ISABEL MUNIZ sempre me inspirou bons versos, bons textos, quem leu seus brilhantes fanzines e viu seus blogs que o digam, os quais, confesso, sempre ficaram um degrau abaixo dos seus, mas um dia eu chego lá, ah, eu chego. Então esta série de poemas escritos entre 2007/2008 – na verdade nem sei se é isso mesmo, resultam do que sempre ficou comigo de suas fotografias e de seus textos, que mais do que fies registros de um tempo em que ela e vários de nossos amigos em comum eram apenas anjos tortos, também servem, à sua maneira, como base para algumas reflexões, entre elas duas: uma imagem diz tudo; e outra: muito do tudo pode ser dito em poucas palavras. E do que seus polaróides se referiam, eu sem pedi permissão, domei para mim um sentido próprio, a minha versão de algumas de suas belas e precisas imagens. Por sorte as imagens, as disponíveis e as que agora só residem na memória do que com ela viveram os melhores anos de suas vidas - das nossas, sempre serão melhores que estes textos, com certeza serão. Mas creio, vale ao menos a tentativa do desenho ser parecido com a fotografia. E, como Ícaro que almejou aos céus, mas teve no mar o melhor dos túmulos, do desenho ser a fotografia.

Então esta é a minha singela homenagem para a agora senhora Isabel Muniz, ou Madame Pieri Morel, a quem desejo do fundo do meu coração toda a felicidade do mundo, que alias lhe é muito, muito merecida.


PRIMEIRA SÉRIE - AS PESSOAS DESCONHECIDAS

AS PESSOAS DESCONHECIDAS


Um estranho é um invasor suportável,
Divide o mesmo elevador, senta no cinema na poltrona ao lado,
Espera o mesmo metrô, também reclama pela demora na fila de banco,
Compra o mesmo refrigerador e chorar em qualquer chegada ou partida.
Tão previsível que irrita tanta previsibilidade,
Tanta proximidade com a minha vida tão estranha para si.



ESTRANGEIROS



Eu vi um menino amarelo
Riscando com carvão preto
No muro branco
Da casa em que não moro
Palavras que ninguém entende.

E daí? O muro não é meu.



DUAS INSTÂNCIAS



Várias décadas e uma saudade
Separavam aquelas duas instâncias.
Um dia então, quando o céu desabava enfim,
A que possuía mais fotografias
Em seu cemitério de memórias,
Abismada, mas um tanto quanto contente,
Saudou com pesar a confirmação do apocalipse.
A outra, ignorante as circunstâncias,
Boquiaberta, era só alegria,
E gritando a quem quisesse ouvir,
Chegou mais perto do fim do mundo e disse:
- Olha, olha só, que lindo, são os fogos do ano novo!



SEGUNDA SÉRIE - OS OBJETOS QUAISQUER

OS OBJETOS QUAISQUER



Para a guerra marchei
Com armar e suprimentos
Sem certeza de vitória.
Pelo caminho deixei
Pistas de quem eu era,
Senhas de onde eu vinha,

Para quando eu, o marinheiro,
Ancorasse em um porto seguro
Não me arrependesse de ter partido.


PORCELANA



Minha dor tem nome e sobrenome,
Endereço fixo e certificado de autenticidade,
Só não tem – não poderia ter, cura.


JAN-KEN-PO



Era como se ainda não soubéssemos de nada.
Quando o vazio da casa ainda não estava mobiliado
Com sonhos contemporâneos ao redor de um Matisse;
Quando o Super-Homem ainda andava
E a MTV e nossos Lps arranhados pervertiam
As nossas almas oitentistas;
Quando ainda não nos conformávamos fácil
Com o pouco que tínhamos e o tanto que nos faltava;
Quando ainda acreditávamos
Que caindo para cima jamais tropeçaríamos
Em estrelas cadentes.
Mas, eis que então nossas crianças cresceram
- E para elas nos tornamos algo meio
Alienígena no porão com saudade de casa,
Quando viram o mundo com seus olhares lassos
E não mais por nossas janelas para jardim de caleidoscópios.

Ah, era tão bom quando éramos todos abençoados
Pela nossa santíssima e altruísta ignorância.
Acreditávamos sem nenhuma excitação ou ressalva
Em qualquer devaneio de um mundo pop em ascensão.
Agora; nada.
Nada mais nos engana. Nem a nós, nem a ninguém.
Todos nós sabemos de tudo. Pena.
Mais por nós do que pelos outros.
Era assim, não é mais nada. Não mesmo.


A RÉGUA E O COMPASSO



Tudo foi muito bem calculado,
Não há erro.

Curvas não são apenas curvas,
Há mais caminho pela frente

Se os olhos não estão cansados de olhar.

Linhas não são apenas linhas,
Há infinitos além

Se os pés não querem pressa para chegar.

Tudo foi bem calculado,
Noves fora, nada.

Eu sou quem não pertenço a esse lugar,
Por isso ele é tão perfeito.



TERCEIRA SÉRIE – OS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO

OS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO



Meus livros de estudo repousam sobre a mesa,
Um elefante de Roberto Freire me espera na sala de jantar,
Um pombo-correio me trouxe novas pelo computador,
Um grilo falante reclama da vida pelo telefone,
E eu queria apenas não ter quebrado minhas asas
Na mais recente vez que da janela saltei em desespero.



SOBRE AS MOSCAS DE BAR E GAIOLAS



À noite, na rua deserta e perversa,
Eu posso ser qualquer desses bichos
Que você cruza, reconhece e desvia o olhar.
Inclusive um desses pássaros de gaiola
Que não se acostumou com a vida fora dela
E no primeiro descuido do destino,
Tal qual filho pródigo arrependido,
Volta para casa, derrotado e envergonhado,
E que, por cautela, medo ou necessidade,
Esconde longe dos olhos as chaves da porta.
É, posso ser qualquer um desses,
Inclusive nenhum.

QUARTA SÉRIE - OS COTIDIANOS ALHEIOS

OS COTIDIANOS ALHEIOS


Para as dores do mundo
Tenho os remédios todos,
Para as minhas dores
Não há remédios que as curem.



MEMÓRIAS DE FUTURO



Meu pai olhou para minha mãe e disse:
Quando éramos anjos
Era nos despindo que nos tornávamos
Deuses,
Agora que somos deuses
É nos vestindo que nos tornamos
Anjos.
Minha mãe olhou para meu pai e sorriu.


SOBRE VOCÊ



Tirar a sorte.
Jogar uma moedinha
Para cima.
Esperar que caia
Anverso ou verso.
E então, e então,
Nada.

QUINTA SÉRIE - AUTORRETRATO


AUTORRETRATO



Geralmente tenho poucos centavos nos bolsos,
Os quais quase sempre
Nunca me permitem ir ou vir.
Ainda assim todo dia acordo e vou,
Toda noite durmo e venho com mais
Sonhos nos bolsos.


A QUINTA DA BOA VISTA


Tenho Certidão de Nascimento, logo nasci,
Tenho Cédula de Identidade, logo vivo,
Terei Certidão de Óbito, logo morrerei.
O que veio antes, o que virá depois,
Tão pouco me interessa, posto que não necessitam
Tanto assim de minha pressa.


NA COMPANHIA DE LOBOS



Quase sempre acordo no meio da noite.
É quando vago pela casa, assalto a geladeira,
Roubo de mim mesmo uma cerveja do fim de semana,
Sento no sofá, acendo um cigarro
E fico observando a sua fumaça subir rumo ao teto,
Enquanto ouço alguma antiga canção do Bob Dylan
E espero que meus fantasmas me façam companhia,
Ou mesmo venham zombar da minha entorpecida solidão.
E eles sempre dão sinais que estão por perto.
Mal sabem eles que quando isso acontece,
Se acordo no meio do dia seguinte no sofá ou mesmo no chão,
Com certeza foi uma das poucas noites em que eu dormi sorrindo.


SEXTA SÉRIE – MONTAGENS


MONTAGENS



As flores no jarro
Sobre a mesa
Na sala de jantar
São de plástico.
Os cristais
Brilhando
Dentro da prateleira
Na sala de estar
São de vidro.
O largo sorriso de surpresa
Quando voltei para casa
Depois de uma noite fora de mim
Não era sincero.

Mas no momento que me pareceu
Ser tudo de verdade,
Eu realmente acreditei que fosse.

COLAGENS

Camadas, tantas camadas,
Que sobre mim vão se tornando momento,
Que pelo caminho vão me desnudando humano,
Que o vento vem e leva, e quando o faz
Nem sempre traz igual de volta,
Camadas, todas as camadas.



MEMORABILIA



Seu passado lhe beijou a testa
Enquanto você dormia e sonhava
Sonhos de um mundo perfeito.
Depois ele abriu a porta,
Deu uma última olhada na casa
E saiu sem olhar para trás.
E andando sempre em frente
Como o tempo que não volta,
Foi aos pouco lhe perdendo da memória
Até lhe esquecer de vez.
E quando você acordou pela manhã,
Ao perceber a porta entreaberta,
Sentiu um estranho aperto no peito
E uma sensação de falta do que nunca teve
Mas que poderia jurar sempre tivera.



ÚLTIMO POLAROIDE



Ela deixará tudo preparado,
Os livros na estante, as contas em dia,
A dispensa abastecida e a casa limpa.

Sim, ela deixará tudo em seu lugar,
Os pingos nos is, as cartas respondidas,
A roupa lavada e a cama arrumada.

E ela deixará a câmera no automático,
Depois colocará a mochila nas costas
E seguirá ao encontro com o seu entardecer.


Fotografias de Isabel Muniz,
descaradamente por mim surrupiadas de seu belo blog belperambulando.
A arte sobre as mesmas é por minha conta mesmo.

NÃO SEI, ACHO QUE NÃO, NÃO É ASSIM QUE FUNCIONA (VERSO VERSÃO)




Ontem passou, aqui estou.

E ainda é como continuar acreditando
que o verdadeiro amor irá, assim, milagrosamente,
descer do seu décimo andar, pelas escadas,
enfrentar o transito, em uma das horas de rush,
subir uma ladeira íngreme, estacionar no canteiro central,
pisar a grama verde do vizinho, e seu cão feroz,
bater a minha porta, debaixo de uma tempestade,
esperar pacientemente,
e quando eu abrir a porta,
com flores e um sorriso de comercial,
ainda irá me perguntar se demorou muito.

Mas, não sei, acho que não, não é assim que funciona.
Tive dois dedos de prosa com Deus no meu último porre
e Ele me falou assim, com seu sorriso perfeito:
não sei, acho que não, não é assim que funciona.

E ainda, é como continuar caminhando
sem eira nem beira, sorrindo, descaradamente,
para o destino a me mastigar, pelas beiradas,
caindo e levantando, em uma manada de búfalos,
levar um chute no estomago, rastejar sob calor equatorial,
encontrar das flores os espinhos, em sua dor o algoz,
chegar à minha hora, bem mais cedo que tarde,
encarar conscientemente,
e quando eu aceitar a derrota,
como perdas de um acordo judicial,
ainda irei me perguntar se isso foi o bastante.

Porque não sei, acho que não, não é assim que funciona,
durante meus dois dedos de prosa com Deus no meu último derrame
Ele me descreveu assim, com seu traço perfeito:
não sei, acho que não, não é assim que funciono.

Engraçado, até ontem eu acreditava que dor era não ser amado,
eu até acompanhava a multidão dos mal-humorados,
sim, eu os acompanhava em cada um dos instantes,
quando no salão essa moeda era lançada,
quando todos entenderam o porquê do sentido anti-horário,
e também quando tudo isso perdeu qualquer sentido.
Engraçado, até ontem eu acreditava errado, dor não é não ser amado,
porque eu amei, sim eu amei, amei a você e a mais ninguém.

Mas e daí, pergunta-me de soslaio o fantasma de Platão,
mas e daí, se hoje já passou, se nada mudou.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

NÃO SEI, ACHO QUE NÃO, NÃO É ASSIM QUE FUNCIONA (VERSÃO PROSA)



Ontem passou, aqui estou.

E ainda é como continuar acreditando que o verdadeiro amor irá, assim, milagrosamente, descer do seu décimo andar, pelas escadas, enfrentar o transito, em uma das horas de rush, subir uma ladeira íngreme, estacionar no canteiro central, pisar a grama verde do vizinho, e seu cão feroz, bater a minha porta, debaixo de uma tempestade, esperar pacientemente, e quando eu abrir a porta, com flores e um sorriso de comercial, ainda irá me perguntar se demorou muito.

Mas, não sei, acho que não, não é assim que funciona. Tive dois dedos de prosa com Deus no meu último porre e Ele me falou assim, com seu sorriso perfeito: não sei, acho que não, não é assim que funciona.

E ainda, é como continuar caminhando sem eira nem beira, sorrindo, descaradamente, para o destino a me mastigar, pelas beiradas, caindo e levantando, em uma manada de búfalos, levar um chute no estomago, rastejar sob calor equatorial, encontrar das flores os espinhos, em sua dor o algoz, chegar à minha hora, bem mais cedo que tarde, encarar conscientemente, e quando eu aceitar a derrota, como perdas de um acordo judicial, ainda irei me perguntar se isso foi o bastante.

Porque não sei, acho que não, não é assim que funciona, durante meus dois dedos de prosa com Deus no meu último derrame Ele me descreveu assim, com seu traço perfeito: não sei, acho que não, não é assim que funciono.

Engraçado, até ontem eu acreditava que dor era não ser amado, eu até acompanhava a multidão dos mal-humorados, sim, eu os acompanhava em cada um dos instantes, quando no salão essa moeda era lançada, quando todos entenderam o porquê do sentido anti-horário, e também quando tudo isso perdeu qualquer sentido. Engraçado, até ontem eu acreditava errado, dor não é não ser amado, porque eu amei, sim eu amei, amei a você e a mais ninguém.
Mas e daí, pergunta-me de soslaio o fantasma de Platão, mas e daí, se hoje já passou, se nada mudou.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

SIMPLES DE CORAÇÃO



Não sei mais quando é claro quando é escuro
quando a verdade pode ser mentira,
não sei mais quando é lagrima quanto é água
quando estou só caminhando na chuva.

Não sei mais quando é perto quando é longe,
que distância mais aproxima suicida do seu destino,
não sei mais quem é do bem e quem é do mal
quando tudo vem como uma pedra rolando.

Não sei mais até quando vou acreditar
que posso mudar o mundo ao meu redor,
que qualquer coisa assim, simples de coração,
traga de volta o que se perdeu para nós.

Não sei mais quem sou eu e quem é você
quando canções não trazem momentos nossos,
não sei mais quando é prazer e quando é dor
quando me entrego ao que não quero.

Não sei mais
se posso mudar o mundo ao meu redor,
que qualquer coisa minha, simples de coração,
traga de volta sonhos que se perderam de nós.

Só sei que vivo porque você vive
noite e dia eu vivo porque você vive
dia e noite só vivo porque você vive, você vive,
só sei que vivo e não sei mais do resto.

SOLIDÃO, A COMÉDIA



Atravessei um lago
e cada vez que eu colocava
meus pés na água
atravessava outro lago,
então percebi que na vida nada
é replica fiel de nada,
nem mesmo o tiquetaquear
de um relógio.
Nem mesmo o sol de ontem
foi o mesmo de tarde,
será o mesmo de amanhã,
pois cada estação é única
assim como cada pessoa
é um universo com um universo
de possibilidades.
E quanto mais ando
por dias e lagos do mundo,
mais e mais descubro
como é tanta a solidão.
Mais e mais descubro
como é tanta a minha solidão
quanto mais preciso andar
por dias e lagos dos outros.

quermese




Saber de ti para saber de mim.
Olhar o infinito para me encontrar aqui.
E na ciranda dos que ofendem e são ofendidos
Girar, girar, girar, até cair entorpecido de ti.

Olhar a chuva e sua melancolia.
Traduzir-te no sussurro
Que se desvia por entre as flores.
Passar pelos dias e noites ileso ao movimento.
Acordar-me silêncio em meio à desordem
Da cidade que habito e me habita.

E então, saber que estou apenas grão
Na poeira do teu breve
Aparecimento.

Deus, como eu amo amar a ti,
Muito mais que a mim mesmo.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

QUEM AMAVA QUEM NÃO AMAVA NINGUÉM




Quem disse que o amor tem lógica
E se desenrola tal qual
Receita de bolo
Com farinha, fermento
E uma pitada de carinho,

Não sabe, o começo é bom,
O meio é divertido
E o final é um inferno.

E agora que de mim restou os pedaços
Pode entrar como entra MST
Invadindo terreno improdutivo,
Pode entrar e pegar o que quiser.

Mas saiba, meu bem querer,
Quero essa dor-de-corno
Rasgando a garganta
Como unha afiada de gato
Arranhando fina seda.

Afinal para essas coisas do coração
Tem sempre uma farmácia de plantão
Com uma mesa de frente para a rua,
Uma geladinha e uma trilha sonora
Mais do que perfeita, a perfeição.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

APENAS ISSO



Eu andei três quilômetros à toa,
Senti sede e muita fome.
Eu vi pessoas se libertando e rindo
Da derrota e do cansaço em meu rosto.
Eu vim de longe porque pensei
Que aqui teria leito e sopa,
Mas veja só, o Exército de Salvação
Só se move para salvar uma multidão
E eu andei três quilômetros à toa...

Acho que vou cair aos seus pés
Como folha seca que se liberta de sua arvore.
Acho que vou cair aos seus pés
Ser pisado e levado na próxima enxurrada.

Eu desenhei um mapa a cera e carvão,
Se prestar a atenção verá que todos os caminhos
Partem do mar e se encontram nas montanhas.
Bem, mesmo que não consiga entender, eu entendo.
O que estou tentando dizer é que eu sempre soube
Que este era um caminho estranho e incerto.
O que estou tentando dizer é que você sempre soube
Que não há nada de errado em não me querer por perto.

Não sei se essa verdade me liberta ou me condena,
Do lado de dentro da janela tem banquete,
Música de qualidade e pessoas felizes à sua maneira,
Do lado de fora tem placas de vagas de emprego.
Isso é meio estranho, por vezes incompreensível,
Quem afinal desejaria perder seu lugar no paraíso
Se não estivesse tão enfadado com ele?

Sei lá, são tantas informações e nenhuma solução,
Acho que vou cair aos seus pés
Ficar assim e não pensar em mais nada
Até ser pisado e levado na próxima enxurrada.

NOVES FORA



O problema é que eu queria seguir em frente
E não olhar para trás quando dobrasse a esquina.
O problema é que o leão de ontem ainda insiste
Em não se contentar em quebrar minha espinha.

O problema é que queria que ficasse para sempre
E não se preocupasse tanto com hora da voltar para casa.
O problema é que eu queria não fosse tão tangente
E não me desse as migalhas das suas poucas horas vagas.

Mas nem sempre noves fora nada
Tem sem uma torneira
A noite inteira pingando, pingando, pingando
Lagrimas de um anjo que desaprendeu a voar.

Eu sei poderia ser pior, poderia não ter nem isso.
Eu sei, você me repete isso toda vez que passa pela porta,
Mas quem lhe viu de verdade como eu vi não se engana
O problema é que você teima em não aceitar a sua verdade.