segunda-feira, 19 de setembro de 2011

CAFÉ COM PLACEBO

(CONTO DEDICADO AO MEU GRANDE AMIGO JULIO)




Dulce é amarga.
Júlio, seu marido, ainda assim a ama. Mais até do que as reprises do desenho animado do Pica-pau, que aos fins de tarde chegam junto com o pôr-do-sol. E tanto quanto os quadrinhos dos X-Men, que depois de uma longa temporada de fascículos ruins, finalmente deram a volta por cima e os editores produziram uma série de respeito.
Dulce acha tudo isso uma tremenda bobagem e ainda não consegue entender como alguém pode torrar as suas economias com desenhos medíocres sobre papel vagabundo. E pior, ainda rir das mesmas piadas previsíveis e, segundo ela, sem a menor graça de um desenho animado idiota. E quando reclama disso, Júlio apenas rir, como se o incêndio fosse longe, na casa de seu vizinho ao lado.
Dulce sofre. Sofre como quem tem pedras pontiagudas nos rins. Mas como todos dizem, ela é saudável. Forte como gente ruim. Tanto que, segundo um comentário maldoso, ainda enterrará a todos os outros parentes. Talvez até Júlio.
Júlio é estranho. Para alguns, é um perfeito idiota. Ela grita com ele, reclama das suas manias, zomba de seu gosto musical, despreza as suas bases culturais. Ainda assim, quando Dulce não poupa uma caixa de supermercado porque errou, por míseros centavos, o troco das compras do mês; quando Dulce briga com outra “Dulce” por uma vaga no estacionamento; ou ainda, quando ela reclama que uma fila qualquer, de banco, cinema ou farmácia, não sai do lugar, Júlio apenas rir e a ela pede, com todo o carinho e calma do mundo, que se acalme, apesar de saber que isso é como um placebo ou mais outro remédio a base de farinha.
Dulce nunca teve filhos. E nunca os terá. Nasceu seca como árvore que só dar sombra. E apesar da impecável limpeza de sua casa, nenhum animal perturba a calma do lar, doce lar, dela e do seu, segundo ela, imprestável marido. Nem peixe dentro de aquário eles criam. Tampouco jardim possuem.
Eles moram desde que se casaram no térreo de um sobrado antigo, no centro da cidade. Júlio sempre quis morar em apartamento, mas Dulce sempre odiou subi escada. E mesmo quando Júlio disse a ela que os elevadores já foram inventados há décadas, ele ganhou dela uma semana inteira dormindo no sofá da sala. Para que sentisse na pele, e na coluna principalmente, que a única opinião realmente importante para ela, é a dela.
Durante os longos vinte anos em que estão casados, Dulce cogitou varias vezes voltar para a casa de seus pais. Em todas essas vezes Júlio apenas olhou para ela, sem dizer nada, mas dizendo algo como: “Você realmente quer fazer isso? Então faça.” Dulce em resposta ficava amuada por alguns dias. Júlio assistia a tudo isso como quem assiste ao leite ferver na leiteira. E antes que o leite derrame, ele olhava para Dulce e sempre dizia: “Meu bem, vamos para a cama que está ficando frio.” Dulce reclamava dele, esperneava como criança mimada, mas depois vencida pelo cansaço, e sem querer descer do salto, concordava com ele, mas só por aquela noite. No dia seguinte bem cedo, antes do primeiro galo cantar, ela iria embora. Na manhã seguinte Júlio a subornava sempre com um banquete dos deuses no café da manhã. E enquanto se alimentava Dulce nem se lembrava mais porque quis tanto ir embora.
Júlio a ama.
E Dulce não durará mais do que duas estações. Seu cisto no ovário se alastrou rapidamente para outros órgãos vizinhos. Ambos descobriram tarde o avanço da tempestade. E ambos sabem que parte do descuido é culpa da própria Dulce que nunca permitiu a outra pessoa tocá-la. A outra parte da culpa é de Júlio por não ter tomado as rédeas da situação há mais tempo.
Dulce é amarga e reclama de tudo. De tudo mesmo: do insosso do arroz, do barulho das crianças na calçada de sua casa, do frio da noite, de tudo. Até mesmo do riso de Júlio em mais um episódio repetido do Pica-pau.
Júlio permanece ao seu lado.
No entanto esta noite ele olhou para Dulce e os olhos dela estavam cheio de lágrimas. E para não a deixar mais constrangida, ele recolocou no lugar com todo o carinho, calma e delicadeza do mundo o cordão do sutiã que caia sobre o ombro dela.
Ela pensou em reclamar. Não encontrou forças.
Ele fingiu não perceber.
Ela desviou o olhar.
Ele tocou com carinho o rosto dela.
Ela se recompôs. Depois reclamou dele.
Júlio se plantou diante da televisão, segurando o choro, e rindo sem querer de mais um episódio repetido do Pica-pau.

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