sábado, 10 de setembro de 2011

A CASA LILÁS DA RUA SEM SAÍDA




A casa de meus pais ficava em uma rua sem saída. E era uma casa incrível. Não pelo seu tamanho. Mas porque era a nossa casa.
Tinha uma varanda com piso de azulejos brancos, e media oito metros e meio por dois metros. Ali meu pai passava as suas tardes de folga, sentado em uma das duas cadeiras de balanço, daquelas bem antigas, com tirinhas de plástico azuis e brancas. De lá, eu me lembro, meu pai lia o seu jornais ou algum livro, tomando o seu café enquanto via a minha mãe cuidando de suas hortênsias no jardim. E quando ela terminava o seu serviço, ia se sentar ao lado dele. E meu pai sempre brincava com o cheiro de terra e de planta que ela trazia do jardim. Eu me lembro de cada uma das várias vezes em que eu e minha irmã chegamos da escola e na varanda pelo menos um deles estava lá nos esperando.
O salão da casa era retangular e media seis por três metros e cinquenta centímetros. Tinha três janelas, duas delas eram voltadas para a varanda e entre essas duas existia uma porta. A terceira janela era voltada para o jardim de minha mãe. Havia ainda uma porta que dava acesso para a cozinha e duas colunas que levavam a um pequeno hall. Nessas colunas minha mãe adorava expor suas cortinas, e meu pai odiava ter que subir na escada para trocá-las.
Nesse salão aconteceram varias festas de aniversário, vários encontros entre os meus pais e os seus amigos, vários almoços e jantares. Ali minha mãe assistia às suas novelas à noite. Eu jogava o meu game com meus amigos nos fins de semana. E meu pai assistia aos jogos de futebol conosco e, de vez em quando com seus amigos. Ali também assistimos todos juntos a três Copas do Mundo. Meu pai e minha mãe a cinco. Minha irmã com eles, quatro. E só uma delas foi vencida pela nossa seleção de futebol. E fizemos a maior festa.
Na mesa de jantar eu e minha irmã fazíamos nossos deveres de casa e meu pai e minha mãe corrigiam as provas de seus alunos. Ele era professor de Matemática. Minha mãe ensinava Literatura. Não à toa tínhamos mais livros em casa do que eu e minha irmã tínhamos brinquedos.
Da sala tínhamos acesso à cozinha e ao hall. A cozinha era uma espécie de L, e a parede que tinha uma porta voltada para a sala media dois metros e quarenta centímetros. Perpendicular a esta parede havia outra que media um metro e quarenta centímetros, onde estavam pregados alguns armários, e outra parede que fechava a perninha do L, de meio metro. Deste mesmo lado existia outra parede de dois metros e quarenta centímetros, atrás desta ficava o banheiro do quarto de meus pais. Outra parede em paralelo com a primeira, de um metro e meio, e uma última que media três metros e oitenta centímetros. Esta dava acesso para a área de serviço da nossa casa, a qual media um metro e noventa por um metro e noventa centímetros. Seguindo por ai tínhamos passagem para o corredor maior localizado ao lado da nossa casa.
Na cozinha tomávamos nosso café da manhã e minha mãe adorava fazer suas macarronadas aos domingos e feijoada em um dos sábados do mês. Eu e minha irmã passamos boa parte de nossa infância naquela cozinha. Nossa mãe tirou diversas vezes licença do trabalho para cuidar melhor de nós dois. Ela arrumava a casa e cuidava de nós com a mesma atenção. Nunca tivemos empregadas e só duas vezes por semana uma diarista vinha ajudar nas tarefas de casa. Ou seja, o titulo de rainha do lar a ela caia perfeitamente bem. Porque a casa sempre estava impecável e os filhos foram muito bem criados.
Saindo da sala, havia ainda um hall de três metros e vinte por noventa centímetros. Ele dava acesso para o quatro da minha irmã, um banheiro entre os quartos, ao meu quarto e ao quarto de meus pais. Era meio que um corredor. E eu passava mais tempo ali quando precisava ir ao banheiro e minha irmã estava se embelezando dentro dele para ir vender o seu charme ou desfilar pelos corredores da nossa escola. Esse sempre foi um dos motivos das nossas inúmeras discussões, as quais eu sempre me dei mal. Ser irmão mais novo tem dessas coisas.
O quarto da minha irmã media três metros e quarenta centímetros por dois metros. E é só isso que sei dele. E isso porque meu pai me contou uma vez as suas medidas. Ela nunca me deixou entrar nele. E durante um bom tempo fiquei imaginando o que realmente acontecia lá dentro. Como vivia implicando comigo sempre acreditei que ela fosse meio bruxa e que lá dentro fazia algumas de suas bruxarias. Ela tinha duas amigas unha e carne, e estas quando vinham nos visitar - ou apenas a ela, passavam tardes inteiras trancadas. Eu ficava atrás da porta do quarto ou da janela, que era voltada para o corredor atrás de nossos quartos, tentando escutar alguma coisa do que falavam, mas só ouvia risinhos e mais risinho e nada mais. Aquele lugar sempre fora para mim um completo mistério. E continua sendo.
Entre os quartos havia um banheiro de um metro e trinta por dois metros e setenta e cinco centímetros. Ali era um excelente lugar para ler quadrinhos e tomar banhos demorados, para desespero de minha irmã. E minha alegria.
O meu quarto era menor que o da minha irmã, media dois metros e oitenta por dois metros e setenta e cinco centímetros. Ali era o meu reino. Eu tinha uma cama, um armário, um guarda-roupa, uma escrivaninha e sobre esta um computador, uma prateleira repleta de livros e historias em quadrinhos. Uma pequena estante com uma tevê e vários vídeos games. Em cima do guarda-roupa eu guardava uma bola de futebol. Em um canto da parede ficavam encostados lado a lado o meu violão e o meu skate e embaixo da cama guardava os meus tênis e sapatos. E embaixo do colchão da cama as minhas revistas e filmes pornôs. Minhas paredes eram repletas de pôsteres de minhas bandas favoritas. Não à toa Nirvana, The Beatles, Radiohead, Green Day, Titãs e Legião Urbana disputavam na tapa cada centímetro de parede. Tirá-los de lá uma vez por ano para que fosse pintado o quarto sempre me deu um trabalho danado. Apesar de todo o cuidado do mundo pedir três dos vinte pôsteres que eu tinha. Um deles, o da Legião Urbana, nunca encontrei outro igual.
Ali também eu gastei várias horas em frente à tela do meu vídeo game, enfiado nos livros de estudo ou nos clássicos americanos de Melville e Hemingway, ou em Fernando Pessoa ou Shakespeare, Hermann Hesse ou Will Eisner, Pato Donald ou Lanterna Verde. Naquele quarto eu tocava e cantava, muito mal por sinal, é verdade, She, Come Are You Are, Giz, Sonífera Ilha e I Feel Fine. E também ali fiquei dias de cama por causa de sarampo, febre ou alguma virose.
O último compartimento da casa era o quarto de meus pais, que ficava colado ao meu. Era a suíte da casa. Logo na entrada havia uma espécie de compartimento menor que media um metro e oitenta e cinco por um metro e quarenta centímetros, sendo essa segunda parede a mesma parede menor da cozinha. Nela ficava o guarda-roupa do quarto. O outro compartimento maior, uma sequencia deste, tinha uma mesma parede do meu quarto. E mais três. Uma media dois metros e noventa centímetros e ao centro tinha uma janela que estava voltada para o corredor menor. A parede seguinte media três metros e quarenta centímetros e nela ficava encostada a cama de meus pais. Ao lado da cama dois criados-mudos. No quarto havia ainda uma cômoda e uma penteadeira com um espelho, uma escrivaninha, computador em cima deste móvel e uma pequena estante com vários livros. A terceira parede media dois metros e quarenta centímetros, nela havia uma porta que dava acesso para o banheiro e este media dois metro e quarenta por um metro e trinta centímetros. Este era o canto de meus pais. E nem eu e nem minha irmã tínhamos muito acesso a ele. E quando meus pais por algum motivo queriam falar de algo sério, eles se trancavam no quarto e conversavam em baixo tom. Várias vezes eu e minha irmã tentamos escutar alguma coisa. Mas lá de dentro nós ouvíamos nossos pais nos mandando voltar para onde estávamos. E claro, nós obedecíamos.
Dois corredores levavam ao quintal da nossa casa. Um maior que media dois metros, e um menor que passava ao lado de todos os quartos e do banheiro, e media um metro e meio. Ambos mediam dez metros e quarenta e cinco centímetros, a largura dos lados da nossa casa.
O quintal media treze metros e sessenta e cinco por quatro metros. E era o canto de nós todos, igual à sala e a cozinha. Não tinha uma árvore sequer, mas lá aconteceram vários churrascos de fim de semana e algumas festas de aniversário. Era também o canto particular de cada um. Ali minha mãe estendia no varal as roupas lavadas e fazia ginástica com uma de nossas vizinhas. Meu pai volta e meia tentava consertar algum eletrodoméstico danificado, sem muito sucesso, claro, ele nascera para ensinar. Minha irmã e suas amigas pintavam as unhas umas das outras, ficavam de bate-papo e outras coisas de meninas que só as meninas entendem. E eu, eu testava acertar uma manobra nova de skate, batia bola contra a parede do quintal, lia ou tocava meu violão.
No quintal meu pai mandara construir uma churrasqueira. E depois que ele comprou uma mesa de pingue-pongue os almoços de domingo ficaram bem mais divertido. E mais perigosos para minha irmã. Volta e meia eu acidentalmente acertava uma bolinha em alguma parte de seu corpo. Principalmente na cabeça. Sem muita maldade, claro. Mas que eu adorava ser um péssimo jogador, com certeza sim.
A última parte da casa era também a primeira a ser vista. A parte da frente. Lá havia o pequeno jardim de hortênsias de minha mãe. Tinha quatro metros de profundidade, e dois metros de sua largura era uma calçada, onde meu pai estacionava o possante dele, o seu Fiat 147, que fazia muito barulho para tão pouco potência, segundo minha mãe. A outra parte tinha um gramado onde eu jogava bola contra a parede do muro da frente da casa, ficava sentado na grama tocando violão ou às vezes me deitava olhando para a noite estrelada. Esse último ato sob duros protestos de minha mãe que reclamava por não ser eu quem lavava as minhas roupas, por isso as sujava tanto.
E o jardim propriamente dito ocupava apenas uma faixa de setenta centímetros que se alongava desde o muro branco da frente da casa até o começo do corredor menor, atrás dos quartos. Não era grande coisa, mas para minha mãe era tudo. Lá ela tinha além das suas hortênsias e duas roseiras, que quase todos os dias derramavam suas pétalas vermelhas, azuis e brancas no gramado, também havia pés de capim santo, hortelã, cidreira, erva doce e babosa. Minha mãe mantinha esse cantinho seu com todo o carinho do mundo. Dedicava suas horas de folga cuidando dele, podando as roseiras, mexendo na areia, recolhendo as folhas secas que caíssem no chão. Meu pai dizia que ela parecia uma criança construindo seus castelos na areia da praia. E como castigo para esse seu comentário minha mãe pedia para ele aproveitasse que não estava fazendo nada, além de observá-la trabalhando, para cortar a grama. Claro que ele fazia isso. E por diversas vezes eles terminavam os seus serviços e ficavam sentados na grama regando as plantas. E a eles mesmos. Meu pai adorava brincar de fazer arco-íris só para mostrar ângulos exatos e explicar matemática e física para minha mãe. Ela sempre reclamava que ele estava estragando água brincando como criança, fazendo castelos de areia na praia. E ainda, em resposta à aula gratuita que antes tivera, recitava algum verso de Mario Quintana ou Cecília Meireles, uma letra de Vinicius de Moraes ou uma canção de Roberto Carlos. Ou seja, cada um defendia à sua maneira o seu queijo. E ao final havia sempre um empate técnico. Eu os olhava da janela da sala, via o que não entendia ainda, o quanto eles se amavam e eram felizes. E depois, para não os incomodar, voltava para o meu quarto e tocava violão.
E então, no ano em que meus pais pagaram a última prestação da casa, vinte anos depois do primeiro pagamento, algumas coisas aconteceram.
A primeira delas foi minha irmã que foi morar com o namorado dela, segundo meu pai, um advogadozinho de porta de cadeia. “Mas ela é adulta, tem vinte e dois anos, está no último ano da faculdade, gosta dele, o que fazer?”. Disse minha mãe. “Gosto não se discute, meu amor, lamenta-se a falta dele”. Meu pai respondeu descontente.
Depois, nosso bairro se tornou um dos mais violentos e perigosos da cidade e a insegurança passou a nos rondar.
Em seguida, a especulação imobiliária fez com que varias casas daquela região sumissem do mapa para dar lugar a prédios de arquitetura duvidosa e a condomínios fechados, protegidos por muros altos e cercas elétricas.
E por último, a pior de todas as coisas aconteceu, e foi justamente no dia do meu décimo sétimo aniversario.
O governo do Estado colocou em pratica o seu projeto arrojado, segundo este mesmo governo, de abrir nossas ruas, por conta do crescimento desgovernado da cidade e para melhor fluir o trânsito. E por umas dessas coincidências do destino a nossa casa estava freando o progresso e o crescimento da cidade. Isso porque exatamente onde ficava nossa casa e mais duas casas vizinhas, passaria uma via expressa, moderna, totalmente segura e fundamental para a modernidade da cidade.
E assim a nossa rua antes sem saída agora encontrara uma.
Meus pais e nossos vizinhos brigaram por dois longos anos para evitar que mudássemos daquele local. Mas foram vencidos pelo progresso. E por bons advogados do governo.
E então, depois de vinte e dois anos morando naquela casa tivemos que nos mudar. Um dia antes minha irmã e o advogado de porta de cadeia, agora seu marido, vieram nos ajudar nos preparativos para a mudança. Nossos vizinhos também vieram. Minha mãe preparou uma macarronada, a pior que já comi em toda a minha vida. Porque tinha o gosto insosso de saudade do que não volta mais. Durante o almoço meu pai estava compenetrado, distante e vazio. Minha mãe ao seu lado era a imagem viva da tristeza, tanto que nem em seu jardim ela vira as suas flores. Meu cunhado se manteve calado e acompanhava a minha irmã em sua dor. Eu via a tudo isso quieto, sem animo algum. Sem mim.
No dia seguinte fomos embora daquela casa. E nunca mais voltamos àquela rua, àquela vida, à nossa casa.
Com o dinheiro que meus pais receberam de indenização pela nossa casa, eles compraram um apartamento em um bairro tão distante, mais tão distante do endereço anterior, que parecia agora morarmos em outra cidade. Parecia até estratégia de guerra de quem teve o coração partido e foge para o mais longe possível dessa paixão.
Mas hoje, por um desses acasos do destino, no intervalo do trabalho para o almoço, vi a imagem pela tevê da casa de meus pais. Na verdade foi apenas uma miragem. A tal da via expressa que se propunha ser solução para um melhor fluxo do tráfego de veículos naquela área da cidade tinha se tornado um elefante branco administrativo. Isso porque naquele trecho agora era comum acontecerem assaltos a veículos e a pessoas a qualquer hora do dia. E também porque a especulação imobiliária falhara ao prever que a cidade cresceria para aquele lado. Aconteceu exatamente o oposto. Então, por conta de tanta violência e insegurança aquele local estava sendo abandonado. E agora, segundo um repórter que fazia uma matéria sobre a triste situação daquele trecho da cidade, exatamente onde ficava a casa de meus pais, o governo já pensava em desativar a tal da via expressa e incentivar a construção de um moderno conjunto habitacional naquele lugar. E desviar o foco de seus fracassos administrativos. E já pensando nas próximas eleições.
Vi aquilo tudo e fiquei pensando na nossa antiga casa. A casa lilás de muro branco. Lembrei que meu pai queria uma casa vermelha. Mas fora vencido pelo bom gosto de minha mãe. Lembrei-me de suas medidas, cada uma delas, centímetro por centímetros, porque nas vezes em que eu e meu pai ficávamos sentados na varanda, ele sempre me dizia todas elas, de cada um de seus vãos. Depois ele me contava os detalhes da reforma que fizera na casa e que esta mesma se iniciou quando souberam que eu estava para vir ao mundo. E que pouco antes do meu nascimento a casa ficara como ele queria. E como eu a conheci.
Agora já eram contados seis longos e difíceis anos desde que nos mudamos. E estávamos muito bem estalados no terceiro andar de um confortável edifício. Pouco falávamos da antiga casa, ou quase nada. Evitando mexer na ferida.
E então quando cheguei à noite nesse apartamento, pensei em contar o que vira na tevê aos meus pais. Minha mãe regava um jarro de hortênsias na varanda. Meu pai corrigia algumas provas de seus alunos, sentado no sofá.
Olhei para eles.
Eles me saudaram.
Minha mãe, sempre esperta como são as mães, logo me perguntou se eu estava bem.
Meu pai olhou para mim e disse que eu parecia meio abatido.
Eu lhes disse que o dia fora duro no meu trabalho.
Minha mãe não quis se intrometer em minha vida. Mesmo sabendo que eu não estava bem, olhou nos meus olhos, sorriu e me avisou que o jantar estaria pronto em vinte minutos. Depois mandou que eu fosse tomar o meu banho e me arrumasse porque minha irmã, o marido dela e a filhinha deles viriam jantar conosco naquela noite.
Olhei para ela e para meu pai e preferir não incomodá-los falando sobre nossa antiga casa. Sobre o quanto ela fora importante para nós todos. Fui para o meu quarto tocar de olhos fechados In My Life, dos Beatles, no meu violão, antes de ir tomar meu banho e me arrumar para o jantar.

Um comentário:

Mário Oliveira disse...

Esta é a essência da família. O protagonista não nota - ou você não nota, dado o subjetivismo que apimenta o texto - mas saber os números não é o importante. Nem mesmo a demagogia/burocracia/corporativismo do governo.

O que importam são as pessoas e a história que construíram no lugar. Como em todas as famílias, a minha, a sua, e às vezes até a dos políticos.

No final, quem faz de um local um local especial são as pessoas que o frequentam, e não a construção em si.

Abraço!

Mário