quinta-feira, 14 de julho de 2011

DECLÍNIO E QUEDA DO IMPERIO ROMANO




- Senhor, senhor, posso andar no seu skate? - perguntou-me um garoto moreno que tinha por volta dos seus doze anos de idade, enquanto eu estava na praça, encostado na grade de proteção da quadra de esportes do meu bairro, olhando os novos skatistas que faziam manobras sobre alguns obstáculos no meio da quadra.
Eu os observava enquanto resolvia se andaria ou não com eles.
- Senhor, senhor, posso? – insistia o garoto.
Eles eram bons. E nada originais. Esforçavam-se demais para ser extraordinários e, no entanto, a cada manobra mais e mais se pareciam com uma readaptação, um tanto perfeita demais, de vários vídeos de skate, cena por cena, do Tony Hawk, Rodney Mullen, Boy George ou de qualquer outro skatista realmente genial. Devem ter rebobinado tantas vezes as velhas fitas VHS ou, o agora tal comum, devem ter baixado direto do Youtube, de modo que aprenderam direitinho. Confesso que era bonito de ver como eles passavam sobre as rampas e deslizavam pelo corrimão. No entanto nada ali era inovador. E ninguém entre aqueles novos desafiadores de ondas duras procurava realmente ser criativo ao enfrentar as dificuldades de execução das manobras. Havia, é verdade, certa beleza naquilo tudo. Mas um tipo de beleza que de tanto ser vista logo se torna enfadonha. E no fundo eu sabia que não havia nada demais neles. Nada que encantasse a um Bob Burnquist ou a Lincoln Ueda da vida.
- Senhor, senhor, posso? – eu ouvia sem escutar a insistência do garoto.
Andar de skate é uma sensação única. Só quem anda ou andou sabe realmente como é. Não é como surfar, tampouco descer duna ou montanha sobre uma prancha ou esqui. Não, é uma sensação única. Sem valor porque não tem preço. E eu durante um bom tempo andei com skate emprestado. E eu era um bocado chato quando pedia aos skatistas que me deixassem dar uma voltinha que fosse. E quando não me deixavam sequer pegar no skate deles, fazia alguma espécie de terrorismo.
Ao fim de uma sessão de vinte minutos, por mais básica e simples que ela seja, o skatista está cansado e precisando repor as energias com algum liquido. Geralmente nas praças nunca se encontra um bebedouro por perto. E eu na minha ânsia de andar, e sabedor que ninguém me emprestaria um skate à toa, sempre levava uma garrafinha de água comigo. Assim a minha água era a minha moeda de troca. Uma espécie de bilhete para eu brincar em qualquer brinquedo do parque de diversões. E dessa maneira eu andava e aproveitava cada um dos segundos dos minutos que eu tinha um skate a minha disposição. Porque andar de skate é uma sensação única, sem valor porque não tem preço. E aqueles skatistas não sabiam disso por isso me vendiam um passeio por alguns goles d’água.
- Senhor...
Eu comecei a andar realmente quando fiz quinze anos de idade, quando comprei meu primeiro skate. Na minha casa dinheiro sempre foi uma mercadoria em falta no supermercado da minha vida. E por conta disso sempre alternei períodos em que morava na casa de meus tios e na casa de meus pais. Eu estudava no centro da cidade, em uma escola particular graças a uma bolsa de estudo integral que minha tia conseguira a duras penas para mim. E para conseguir comprar meu skate economizei todo e qualquer o dinheiro que eu ganhasse. Desde o dinheiro da merenda na escola, o da passagem de ônibus e alguns trocados que meu tio me dava quando eu o ajudava na venda de pipoca nos fins de semana. E também vendendo alguns quadrinhos que eu tinha para meus amigos que eram loucos para tê-los. E então, em uma bela quinta-feira, acabei comprando meu único skate, um magnífico Birdhouse vermelho, que me custou o que já mencionei e mais uma ajudinha de minha tia. Ela percebeu o quanto eu queria aquele meu objeto do desejo, ao ver o meu aborrecimento em uma tarde em que não consegui andar de skate e me tranquei chateado no meu quarto.
Dessa maneira eu juntei uma pequena fortuna para comprar um skate de segunda mão, e isso porque um conhecido meu estava precisando de dinheiro urgente. Ele engravidara uma namorada sua, iriam morar juntos, trabalhar dois expedientes, estudar à noite e o seu skate certamente ficaria abandonado em um canto qualquer de sua nova casa. Em situação normal ele nunca venderia o seu skate. Era tão fascinado por andar quanto eu. Mas “o destino é inexorável”. E assim, por conta de um descuido seu, aquele skate veio morar comigo.
Então eu tinha um skate.
E eu o levava para onde eu fosse. Desde a escola até a praia. Sim a praia. Apesar de ter morado por toda a minha vida em uma cidade litorânea nunca aprendi a nadar. Meus amigos iam surfar e eu ficava na areia, deitado com a cabeça encostada na base do meu skate. Eu sabia que isso era motivo de piada entre os meus amigos, mas isso pouco me importava.
Apesar de ser skatista e ter um skate, como skatista nunca foi lá grande coisa, mas acertava algumas manobras básicas e outras um tanto difíceis. Nos dias mais felizes eu fazia com quase perfeição um backside, grub e às vezes até um kirkflip. No entanto, nos dias normais, eu voltava ao normal e errava feio até uma das manobras mais fáceis do mundo, o ollie. Essa minha inconstância me fizeram alvo constante da gozação entre os skatistas que me conheciam. E isso acabou por me distanciar cada vez mais e mais de qualquer grupinho. E me fazendo preferir andar sozinho. Livre. Eu, meu skate, minha mochila nas costas, meu tênis Qix preto - com um silvertape no detalhe, jeans geralmente com a barra se desfazendo por conta da lixa, alguma camisa vermelha, Green Day no headphone, o asfalto e o mundo inteiro ao meu dispor.
Nunca participei de nenhum campeonato. Nunca me esforcei para acertar alguma manobra difícil. E nunca me importei com isso. Eu era apenas um skatista como outro qualquer. Sempre andei por andar. Pelo prazer de sentir no rosto o vento vindo na contramão, na descida de uma ladeira. Pelo prazer de abri meus braços e me equilibrar sobre meu skate e me deixar escorregar, ouvindo o som das rodinhas riscando a chão. E isso para mim sempre foi o suficiente. Surfar na onda dura.
Hoje há varias manobras de skate que não consigo mais fazer. 180º, kirkflip, hardflip estão entre elas. Pior ainda, nos meus dias mais complicados nem um ollie, a mais simples das manobras, faço direito.
E isso tem uma razão.
Das inúmeras vezes em que caí e quebrei alguma parte do meu corpo, três delas foram por causa do skate. Nessas quedas a minha mão esquerda foi à vítima. Sendo que na última vez o médico que me engessou a mão disse algumas duras verdade para mim. Ele “sugeriu” que, como eu não tinha mais quinze anos, eu deixasse de andar de um lado para outro em cima de uma pranchinha sobre quatro rodinhas; que eu deixasse essa brincadeira de adolescente de lado e me dedicasse a uma corridinha leve de trinta minutos, ou coisas do tipo. Ele me disse isso de uma maneira tão dura, algo como: “faça isso ou perca a mão”. Puro terrorismo, eu sei, mas desde então aprendi que não importa o que é dito e sim a maneira como isso é feito. E pior, quem lhe diz isso. De alguma maneira isso serviu mesmo para que eu olhasse para outros lados.
E nada do que eu vi me agradou muito naquela época.
Deste dia em diante fui menos skatista do que qualquer um que eu conhecera, os que andavam como eu, os amadores. Deste dia em diante, posso dizer, já não fui mais um skatista. Digo isso porque a partir daí percebi que ao colocar meu skate no asfalto e ao me preparar para subir em cima dele, eu adquirira o medo de cair e de me machucar. E isso para um skatista é o fim. Um skatista não pode ter medo de cair e se machucar, porque isso é tão natural quando respirar, comer, dormir e tudo mais que nos mantém vivos.
Ainda assim continuei andando, mais por teimosia do que por qualquer outro motivo. Com menos pressa e com muito mais cuidado. E o skate, menos que uma diversão passou a ser, e foi por um bom tempo, uma tela empoeirada na parede da minha casa.
Até que hoje eu tirei esse quadro da parede e resolvi enfrentar novamente a mesma quadra que tempos atrás eu implorava para conseguir um skate para dar uma volta que fosse. E a quadra continuava como sempre estivera. Cheia de skatista de diversas idades. E havia sim lugar para eles todos ali. Para eles sim. Para mim, não. Eu olhava aquele universo e me sentia estranho a ele. Um total estrangeiro. E um ridículo homem de meia idade, segurando um skate velho vermelho. Velho e com alguns arranhões pelo corpo.
- Senhor, senhor, posso andar no seu skate? - perguntou-me um garoto moreno que tinha por volta dos doze anos de idade, enquanto eu estava na praça, encostado na grade de proteção da quadra de esportes do meu bairro, olhando os novos skatistas que faziam manobras sobre alguns obstáculos no meio da quadra. Eu os observava enquanto resolvia se andaria ou não com eles.
- Senhor, senhor, posso? – insistia o garoto.
Eu olhei para o garoto. E antes que ele me fizesse mais uma vez a mesma pergunta que me fizera nos últimos vinte minutos eu disse:
- Não.
- Não posso senhor? – perguntou-me ele desanimado, quase que caindo no choro.
- Não garoto.
- Tudo bem então. – ele disse isso e foi se afastando de mim, desolado, triste e derrotado.
Eu o chamei de volta. Exatamente porque me vi nele. E porque não me vi mais naquele mundo.
- Não, garoto, - eu disse, - eu não posso lhe emprestar meu skate. Mas pode ficar com ele.
Depois eu coloquei o meu skate no chão e dei um leve empurrãozinho para que este chegasse até onde o garoto estava. E antes que o skate chegasse aonde o garoto estava eu me virei e fui andando o mais rápido que pudesse para longe daquele lugar que um dia fora a minha casa.

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