sábado, 8 de outubro de 2011

CRÔNICAS COLETIVAS DO COTIDIANO - Eu Sou Davi



Eu disse, e ele acreditou. Podemos consertar isso. Sim podemos. Foi como eu disse. Ele ficou me observando e contabilizando os estragos da última chuva forte que caira em minha vida, enquanto eu tapava buracos no telhado de minha casa. Mas, olha só, continuei falando, onde antes só havia escuridão passa agora um raio de sol por uma fenda. Não é curioso? Ele concordou comigo, afinal não se pode contrariar a um homem que tem pregos e martelo nas mãos, vai que esteja aberta a temporada de caça aos cristãos. Mas, sei lá, às vezes isso tudo é o suficiente para nos salvar das agonias de um dia daqueles.
Ele me conhece como ninguém e também ao ranking de minhas lutas perdidas. As quais constam um desses inúmeros planos econômicos falidos que me levou quase tudo que eu tinha; três casamentos malsucedidos que me levaram o resto; a escolha errada da minha formação acadêmica; a quebra de duas empresas que eu abri e de uma que apenas gerenciava; além de duas quedas de moto e um feio acidente de carro, este último por sinal me deixou algumas cicatrizes pelo corpo e dois pinos na perna direita.
Por um tempo eu cheguei a acreditar que ele duvidava da minha capacidade de reação. Uma vez ele me disse que eu não precisava passar por tudo o que passava, bastava apenas ser menos desligado. Então eu disse, mais para tranquilizá-lo do que a mim: eu sou Davi, o rei de reino algum, o que insiste em continuar de pé e tentando acertar. E ele me respondeu: então, tá.
Algumas pessoas me consideram um completo imbecil que confunde persistência com teimosia. Mas pouco me importa a opinião alheia. Eles não vivem a vida que vivo. Eles não sentem a dor que sinto. Além do que o enterro, quando eu morrer, será o meu, e não o deles.
Mas, eu tenho razões de sobra para ser como sou. Meu pai um dia fora um dos mais xiitas dos comunistas, daqueles que não toma nem coca-cola e duvida até da existência de forças divinas. Mas quando chegara a casa dos sessenta anos e sofrera um ataque cardíaco que quase lhe derrotou, aos céus pediu perdão e desde então vai à missa todos os domingos. E até se filiou a um partido de direita. A minha mãe fora uma empregada domestica, dessas que acorda às cinco da manhã, toma dois ônibus, ganha pouco, se alimenta mal e ainda acredita em romance de novela da televisão. Essa, aliás, foi quem me ensinou que a humildade é uma grande virtude. E a ingenuidade, nem tanto. O meu único irmão fora morto por uma bala perdida que o encontrou em uma troca de tiros entre traficantes e policiais, quando saia da faculdade em que estudava. Um dos meus filhos mora com a mãe e vive agarrado ao pescoço do namorado - um branquelo arrumadinho, com pinta de machão, marrentinho, bombado e metido a skinhead. E confesso que ainda não me acostumei a vê-lo de batom preto, cabelos crespos alisados a base de chapinha, roupas coloridas e cantarolando músicas medíocres de cantoras da moda. A minha filha, que mora com a outra ex-mulher, é a única que tomou jeito na vida. Faz o último ano de Administração e vai herdar com certeza a gerencia de uma rede de supermercados do atual marido de minha ex, um velho gagá e babão, que cheira a naftalina, mas que é cheio da nota. E para mim esse casamento foi um puro e certeiro golpe do baú. Mas sei lá, cada um tem o destino que merece. Ou procura.
Então, não há como não acreditar que nada pode piorar em minha vida.
Eu olhei para o meu amigo e ele sorriu. Talvez se lembrando de alguma piada antiga. Ou da desgraça que se tornou a minha vida.
Nós nos conhecemos no bar em que batemos ponto. Quando ambos estávamos ainda na faculdade. E na ocasião eu estava matando uma aula de Cálculo 2, em plena manhã de segunda-feira. Tomávamos cervejas em mesas separadas e ouvíamos Foo Fighters. Como ele sabia de cor algumas das canções, logo puxei conversa. E como estranhos têm a virtude de em menos de cinco minutos se tornarem amigos de uma vida inteira, logo já éramos quase parentes. Ele estava esfriando a cabeça para se curar de mais uma dor de cotovelo que demorava a cicatrizar. E eu estava ali para me esquecer de uma pesada discussão por causa de pensão alimentícia com uma das minhas futuras ex-esposas. A primeira. Não demorou e já éramos parceiros de farra. E nossa amizade foi se firmando ao longo dos anos. Os quais ele pode de camarote acompanhar a novela de minha vida. E quando alguma coisa não estava muito bem em sua minha vida, eu tinha propriedade para chegar até ele e lhe dizer sorrindo: relaxe, meu amigo, se eu que sou Davi, a mais mazelada das pessoas, sobrevivi a coisas piores, qualquer pessoas no mundo também consegue.
Mas saber disso, confesso que nunca foi um conforto para ninguém. Tampouco para ele.
Hoje a tarde começou meio nublada. Algo pouco comum para um sábado. E ele passou de surpresa em minha casa escoltando a um legitimo doze anos. Esse por sinal é um mal habito que ele tem e precisa consertar com urgência: aparecer sem avisar na casa dos outros. Mas se ele avisar qual será a graça da surpresa? Ele veio me visitar com o sublime intuito de ter a minha valiosa ajudar para derrubar com ele aquele escocês. Eu sei e ele também que é péssimo quando não consegue mais se acostumar a beber sozinho, porque fica sempre faltando alguma peça no tabuleiro de seu xadrez. Mas ele logo percebeu que aquele era um momento inconveniente. Eu discutia como dois rivais de arquibancadas com a minha atual mulher. Ela, como as outras, logo iria embora. Isso era uma questão de tempo. Ambos sabíamos disso. Nós o vimos e um anestésico instantâneo se aplicou no ar. Ela fechou o rosto para ele, como quem diz: “lá se vem mais um dos seus inúteis amigos de copo”. Ele viu aquilo e fingiu que nem era com ele. Eu o cumprimentei como se não nos víssemos há décadas, com o meu sincero e perfeito sorriso de canto a canto da boca. Depois ficamos na sala enquanto a minha esposa se trancara no quarto. Minutos depois ela reapareceu com duas malas nas mãos, uma mochila nas costas e a cara de poucos-amigos. Ele concluiu que realmente tinha escolhido errado à hora de me visitar. Eu pedi licença e fui conversar com ela. Mas nada a declinou de sua decisão. E quando ela foi embora, permanecemos calados por um tempo e depois para quebrar o gelo comentei com ele a natureza selvagem das mulheres. E a minha. E depois ele ainda me ajudou a consertar algumas coisas que estavam fora do lugar em minha casa.


Depois da tempestade, eu disse a ele, é preciso sem demora recolocar o pouco que restou de volta aos seus devidos lugares. Porque, quem garante que o pouco de hoje não será o tudo de amanhã? Ele concordou comigo sem nem pestanejar, afinal não se pode contrariar a um homem que apesar de ter beijado a lona sete vezes, não ficou por muito tempo contemplando a imensidão tranquila do ringue. Mas, sei lá, às vezes isso tudo pode ser a mola propulsora para me lembrar de que nem sempre continuar tentando é mais importante do que ser vencido.

ARTE: retirado de SIN CITY de FRANK MILLER
ARTE : retirado de AKIRA de KATSUHIRO OTOMO
TEXTO: CLAUDIO ALVING

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