sábado, 8 de outubro de 2011

CRÔNICAS COLETIVAS DO COTIDIANO - O mendigo, a igreja e a sociedade



Mais um domingo de missa como tantos outros. Sentado naquela escadaria da catedral estava Zé Brasil, o mendigo. Seu nome na realidade não era José, este fora um adotado após tanto tempo morando na rua e mais tempo ainda depois de perder a própria identidade. Apesar de adotar um nome para si, nunca o usavam: chamavam-no de mendigo, pilantra, sem-vergonha, desocupado, maltrapilho e tantas outras alcunhas. Zé não ligava. Nos dias de missa ele colocava seu prato em um dos lances de escada, sentava no lance logo acima e gemia para os mais próximos ouvirem:
- Uma esmola, pelo amor de Deus! Uma esmola, em nome de Jesus!
Boa parte das pessoas não se comovia com aquela situação, mas como era dia de missa e era um ótimo dia para praticar a fraternidade ao próximo, muitos davam a Zé alguns trocados. Assim, o mendigo ganhava o seu pão, para os momentos de fome, e ganhava o seu circo, na figura da sua aguardente, que proporcionava o seu entretenimento em momentos de solidão.
Não havia nada de especial em Zé Brasil. Era paupérrimo e viera do interior de um estado pobre que ficava bem longe da selva de pedra em que vivia atualmente, acreditando nas promessas de um futuro melhor longe da estiagem. Ao chegar à cidade grande descobriu que as promessas não passavam de nada além de promessas. Tentara pedir dinheiro para voltar para casa, mas não recebera crédito algum. As pessoas não tinham como saber que, entre tantos mentirosos, aquele pobre homem falava a verdade. Zé ainda tinha nome nesse momento. Perdeu-o meses após, com a ajuda de incontáveis goles da cachaça que o alentava nas noites de frio. Suas memórias se esvaíram com a passagem de dias, meses, anos. Todavia, no fundo de seu âmago, Zé guardava lembranças da sua terra natal.
Naquele domingo de missa, naquela igreja, naquela escadaria, Zé decidiu dar um basta à vida de mendigo e voltar para onde nunca deveria ter saído. Voltar para seu agreste, onde não havia concreto. Decidiu parar de beber e guardar parte do que recebia para voltar para casa. Emprego não conseguiu, mas tentou conseguir. Quem empregaria um mendigo? Sem saída, Zé continuou pedindo esmola e relembrou como era difícil fazer isto sóbrio. A embriaguez borrava o olhar penoso das pessoas anteriormente.
De grão em grão, Zé conseguiu juntar todo o dinheiro. Era um dia glorioso, pensava. Correu para a estação e comprou o bilhete. Logo após o grande feito, fez o que normalmente os mendigos não fazem: voltou à sua velha escadaria e entrou na igreja para agradecer por tudo. Mas sua recepção não foi tão calorosa quanto pensou que seria.
- O que um mendigo faz aqui no meio de todos? - murmurou alguém.
- Deve vir pedir esmola junto com a coleta do dízimo. Mas que audácia! - sussurrou baixinho outra pessoa.
- Alguém deveria chamar a polícia! Este é um lugar sagrado, não um lugar para um mendigo pedir esmolas. Onde já se viu uma coisa dessas? - comentou uma terceira pessoa, desencadeando uma chuva de julgamentos em vozes baixas.
O mendigo caminhou até o meio da igreja e escolheu uma fileira com um lugar vazio. Não que importasse se aquele lugar escolhido estava vazio ou não, pois logo após a escolha todos os outros ocupantes do banco mudaram de posição, ocupando outros lugares.
Zé apreciou as figuras celestiais ornamentadas nas paredes da catedral e pôs-se a ouvir o sermão do padre. O padre separou um dos seus sermões favoritos para aquele dia, aquele que tratava sobre a importância da gentileza, do poder do amor e do respeito que os seres humanos, irmãos sob os olhares da santíssima trindade, deveriam sentir uns pelos outros. As pessoas não ligaram para o sermão daquele dia. O mendigo atraía uma atenção muito maior.
Zé Brasil é uma pessoa como tantas outras. Tem suas angústias. Tem seus medos. Tem seu orgulho. De olhos fechados, rezou e sentiu as pessoas o observando. Terminou de rezar e se dirigiu novamente ao meio da igreja. O silêncio invadiu o local e todos, inclusive o padre, prenderam a respiração e esperaram o próximo passo do mendigo.
Num giro, Zé observou todos e notou que a regra dos homens é muito diferente das regras de Deus. Levantou o dedo, fechou os olhos e gritou, em alto e bom tom:
- Seja feita a vossa vontade! Amém! – girou os calcanhares e correu para a rodoviária, se despedindo da hipocrisia da sociedade da metrópole.
Ainda hoje todos os frequentadores daquela igreja se perguntam por onde anda aquele mendigo tão singular. Alguns deles agradecem até hoje aos céus que o mendigo nunca mais voltou à igreja.

ARTE: retirado de UM CONTRATO COM DEUS de WILL EISNER
TEXTO; MARIO OLIVEIRA

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