segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

FOTOGRAFIAS EM BRANCO E PRETO DE ISABEL MUNIZ

TEXTO DE APRESENTAÇÃO DA SÉRIE

Minha amiga e poetisa bissexta ISABEL MUNIZ sempre me inspirou bons versos, bons textos, quem leu seus brilhantes fanzines e viu seus blogs que o digam, os quais, confesso, sempre ficaram um degrau abaixo dos seus, mas um dia eu chego lá, ah, eu chego. Então esta série de poemas escritos entre 2007/2008 – na verdade nem sei se é isso mesmo, resultam do que sempre ficou comigo de suas fotografias e de seus textos, que mais do que fies registros de um tempo em que ela e vários de nossos amigos em comum eram apenas anjos tortos, também servem, à sua maneira, como base para algumas reflexões, entre elas duas: uma imagem diz tudo; e outra: muito do tudo pode ser dito em poucas palavras. E do que seus polaróides se referiam, eu sem pedi permissão, domei para mim um sentido próprio, a minha versão de algumas de suas belas e precisas imagens. Por sorte as imagens, as disponíveis e as que agora só residem na memória do que com ela viveram os melhores anos de suas vidas - das nossas, sempre serão melhores que estes textos, com certeza serão. Mas creio, vale ao menos a tentativa do desenho ser parecido com a fotografia. E, como Ícaro que almejou aos céus, mas teve no mar o melhor dos túmulos, do desenho ser a fotografia.

Então esta é a minha singela homenagem para a agora senhora Isabel Muniz, ou Madame Pieri Morel, a quem desejo do fundo do meu coração toda a felicidade do mundo, que alias lhe é muito, muito merecida.


PRIMEIRA SÉRIE - AS PESSOAS DESCONHECIDAS

AS PESSOAS DESCONHECIDAS


Um estranho é um invasor suportável,
Divide o mesmo elevador, senta no cinema na poltrona ao lado,
Espera o mesmo metrô, também reclama pela demora na fila de banco,
Compra o mesmo refrigerador e chorar em qualquer chegada ou partida.
Tão previsível que irrita tanta previsibilidade,
Tanta proximidade com a minha vida tão estranha para si.



ESTRANGEIROS



Eu vi um menino amarelo
Riscando com carvão preto
No muro branco
Da casa em que não moro
Palavras que ninguém entende.

E daí? O muro não é meu.



DUAS INSTÂNCIAS



Várias décadas e uma saudade
Separavam aquelas duas instâncias.
Um dia então, quando o céu desabava enfim,
A que possuía mais fotografias
Em seu cemitério de memórias,
Abismada, mas um tanto quanto contente,
Saudou com pesar a confirmação do apocalipse.
A outra, ignorante as circunstâncias,
Boquiaberta, era só alegria,
E gritando a quem quisesse ouvir,
Chegou mais perto do fim do mundo e disse:
- Olha, olha só, que lindo, são os fogos do ano novo!



SEGUNDA SÉRIE - OS OBJETOS QUAISQUER

OS OBJETOS QUAISQUER



Para a guerra marchei
Com armar e suprimentos
Sem certeza de vitória.
Pelo caminho deixei
Pistas de quem eu era,
Senhas de onde eu vinha,

Para quando eu, o marinheiro,
Ancorasse em um porto seguro
Não me arrependesse de ter partido.


PORCELANA



Minha dor tem nome e sobrenome,
Endereço fixo e certificado de autenticidade,
Só não tem – não poderia ter, cura.


JAN-KEN-PO



Era como se ainda não soubéssemos de nada.
Quando o vazio da casa ainda não estava mobiliado
Com sonhos contemporâneos ao redor de um Matisse;
Quando o Super-Homem ainda andava
E a MTV e nossos Lps arranhados pervertiam
As nossas almas oitentistas;
Quando ainda não nos conformávamos fácil
Com o pouco que tínhamos e o tanto que nos faltava;
Quando ainda acreditávamos
Que caindo para cima jamais tropeçaríamos
Em estrelas cadentes.
Mas, eis que então nossas crianças cresceram
- E para elas nos tornamos algo meio
Alienígena no porão com saudade de casa,
Quando viram o mundo com seus olhares lassos
E não mais por nossas janelas para jardim de caleidoscópios.

Ah, era tão bom quando éramos todos abençoados
Pela nossa santíssima e altruísta ignorância.
Acreditávamos sem nenhuma excitação ou ressalva
Em qualquer devaneio de um mundo pop em ascensão.
Agora; nada.
Nada mais nos engana. Nem a nós, nem a ninguém.
Todos nós sabemos de tudo. Pena.
Mais por nós do que pelos outros.
Era assim, não é mais nada. Não mesmo.


A RÉGUA E O COMPASSO



Tudo foi muito bem calculado,
Não há erro.

Curvas não são apenas curvas,
Há mais caminho pela frente

Se os olhos não estão cansados de olhar.

Linhas não são apenas linhas,
Há infinitos além

Se os pés não querem pressa para chegar.

Tudo foi bem calculado,
Noves fora, nada.

Eu sou quem não pertenço a esse lugar,
Por isso ele é tão perfeito.



TERCEIRA SÉRIE – OS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO

OS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO



Meus livros de estudo repousam sobre a mesa,
Um elefante de Roberto Freire me espera na sala de jantar,
Um pombo-correio me trouxe novas pelo computador,
Um grilo falante reclama da vida pelo telefone,
E eu queria apenas não ter quebrado minhas asas
Na mais recente vez que da janela saltei em desespero.



SOBRE AS MOSCAS DE BAR E GAIOLAS



À noite, na rua deserta e perversa,
Eu posso ser qualquer desses bichos
Que você cruza, reconhece e desvia o olhar.
Inclusive um desses pássaros de gaiola
Que não se acostumou com a vida fora dela
E no primeiro descuido do destino,
Tal qual filho pródigo arrependido,
Volta para casa, derrotado e envergonhado,
E que, por cautela, medo ou necessidade,
Esconde longe dos olhos as chaves da porta.
É, posso ser qualquer um desses,
Inclusive nenhum.

QUARTA SÉRIE - OS COTIDIANOS ALHEIOS

OS COTIDIANOS ALHEIOS


Para as dores do mundo
Tenho os remédios todos,
Para as minhas dores
Não há remédios que as curem.



MEMÓRIAS DE FUTURO



Meu pai olhou para minha mãe e disse:
Quando éramos anjos
Era nos despindo que nos tornávamos
Deuses,
Agora que somos deuses
É nos vestindo que nos tornamos
Anjos.
Minha mãe olhou para meu pai e sorriu.


SOBRE VOCÊ



Tirar a sorte.
Jogar uma moedinha
Para cima.
Esperar que caia
Anverso ou verso.
E então, e então,
Nada.

QUINTA SÉRIE - AUTORRETRATO


AUTORRETRATO



Geralmente tenho poucos centavos nos bolsos,
Os quais quase sempre
Nunca me permitem ir ou vir.
Ainda assim todo dia acordo e vou,
Toda noite durmo e venho com mais
Sonhos nos bolsos.


A QUINTA DA BOA VISTA


Tenho Certidão de Nascimento, logo nasci,
Tenho Cédula de Identidade, logo vivo,
Terei Certidão de Óbito, logo morrerei.
O que veio antes, o que virá depois,
Tão pouco me interessa, posto que não necessitam
Tanto assim de minha pressa.


NA COMPANHIA DE LOBOS



Quase sempre acordo no meio da noite.
É quando vago pela casa, assalto a geladeira,
Roubo de mim mesmo uma cerveja do fim de semana,
Sento no sofá, acendo um cigarro
E fico observando a sua fumaça subir rumo ao teto,
Enquanto ouço alguma antiga canção do Bob Dylan
E espero que meus fantasmas me façam companhia,
Ou mesmo venham zombar da minha entorpecida solidão.
E eles sempre dão sinais que estão por perto.
Mal sabem eles que quando isso acontece,
Se acordo no meio do dia seguinte no sofá ou mesmo no chão,
Com certeza foi uma das poucas noites em que eu dormi sorrindo.


SEXTA SÉRIE – MONTAGENS


MONTAGENS



As flores no jarro
Sobre a mesa
Na sala de jantar
São de plástico.
Os cristais
Brilhando
Dentro da prateleira
Na sala de estar
São de vidro.
O largo sorriso de surpresa
Quando voltei para casa
Depois de uma noite fora de mim
Não era sincero.

Mas no momento que me pareceu
Ser tudo de verdade,
Eu realmente acreditei que fosse.

COLAGENS

Camadas, tantas camadas,
Que sobre mim vão se tornando momento,
Que pelo caminho vão me desnudando humano,
Que o vento vem e leva, e quando o faz
Nem sempre traz igual de volta,
Camadas, todas as camadas.



MEMORABILIA



Seu passado lhe beijou a testa
Enquanto você dormia e sonhava
Sonhos de um mundo perfeito.
Depois ele abriu a porta,
Deu uma última olhada na casa
E saiu sem olhar para trás.
E andando sempre em frente
Como o tempo que não volta,
Foi aos pouco lhe perdendo da memória
Até lhe esquecer de vez.
E quando você acordou pela manhã,
Ao perceber a porta entreaberta,
Sentiu um estranho aperto no peito
E uma sensação de falta do que nunca teve
Mas que poderia jurar sempre tivera.



ÚLTIMO POLAROIDE



Ela deixará tudo preparado,
Os livros na estante, as contas em dia,
A dispensa abastecida e a casa limpa.

Sim, ela deixará tudo em seu lugar,
Os pingos nos is, as cartas respondidas,
A roupa lavada e a cama arrumada.

E ela deixará a câmera no automático,
Depois colocará a mochila nas costas
E seguirá ao encontro com o seu entardecer.


Fotografias de Isabel Muniz,
descaradamente por mim surrupiadas de seu belo blog belperambulando.
A arte sobre as mesmas é por minha conta mesmo.

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