terça-feira, 10 de maio de 2011

MICAEL LIMPO

Único registro na última página do diário de Micael, encontrado por sua mãe sobre a cama dele, entre algumas revistas em quadrinhos, fotografias dele entre amigos - algumas delas contendo em seus versos trechos em inglês de um poema de Edgar Allan Poe - e um exemplar bastante danificado, sujo e com algumas páginas faltando de Moby Dick. Curiosamente as páginas anteriores deste mesmo diário estavam todas em branco.
Um passo de cada vez, um dia de cada vez, até voltar a ficar sóbrio, para quem sabe amanhã, amanhã voltar a viver. É tão difícil assim, meu Deus esse amanhã que nunca chega?
Hoje eu não cheirei, não traguei, não bebi, não comi e não roubei nada de ninguém para satisfazer qualquer necessidade minha. Qualquer vontade desesperada de me manter longe dos meus problemas. Você nem pode imaginar o quanto o dia de hoje me pesou e o quanto ainda me pesa. Hoje eu não matei ninguém, nem ninguém me matou com drogas que me aliviariam da dor de viver, porque eu não deixei. Confesso que nunca pensei que conseguiria menos. Eu estou assim, meio torto, meio tonto e é ainda por causa da visão da realidade. Será mesmo por isto? Não sei.
Hoje eu não furei, não me piquei, não bati, não feri e não quebrei nada de ninguém para compensar qualquer ausência minha. Qualquer medo alucinado de me querer longe dos meus dilemas. Mesmo sabendo que eles ainda rondaram minha casa. E as minhas horas passaram lentas. Ainda estou meio sonolento, será por causas dos remédios de ontem? Hoje também, eu não droguei ninguém e nem ninguém me drogou com remédios que me curariam do mal de querer morrer, porque eu não deixei. Apesar das razões todas e das chances tantas, hoje meu amigo, eu fiquei “limpo” esperando acordado para lhe dizer, com todas as palavras, que hoje a resistência venceu. E nada nem ninguém me impediram de querer vencer. Estranho, pensei que fosse mais difícil. É, pensei.
Hoje foi um dia bom. Eu até olhei para o sol de modo diferente depois de tantos dias no escuro. Ele estava lá como sempre esteve, quente, majestoso e tão perto e tão distante. Aproveitei e me banhei de luz. Nunca pensei que conseguiria sentir prazer em algo tão bobo como a luz do sol. Não pensei que conseguiria. É, hoje foi um dia bom. Eu não ofendi ninguém com minha dor, nem machuquei ninguém dizendo o que restou: esta pessoa aqui a sua frente. Hoje foi assim, um dia simples para um dia de cada vez. Eu vejo o amanhã vindo como chuva ácida sobre mim. Não vem leve. Pesa ainda na consciência os defeitos do ontem. Ainda assim ele vem vindo veloz e dele não posso garantir nada, só que tentarei enfrentá-lo.
Por isso, meu amigo, aceite o fato de eu ter vencido meu inimigo no dia de hoje. É pouco, mas é tudo o que tenho para oferecer. Do amanhã nada se sabe, nada. Você nem imagina o quanto tudo isso me custou e nem o quanto me valeu.
Quando a mãe de Micael terminou a leitura desta página de seu diário, olhou para ele, chorou e depois se deitou ao lado de seu corpo inerte e frio, como só as mães sabem fazer para que seus filhos tenham uma boa noite de sono.

Nenhum comentário: